As Coisas
A bengala, as moedas, o chaveiro,
a fechadura dócil, as tardias
notas que não lerão os poucos dias
que me restam, o naipe, o tabuleiro,
um livro e dentro dele a emurchecida
violeta, monumento de uma tarde
por certo inesquecível já esquecida,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma aurora ilusória. Quantas coisas,
atlas, limas, umbrais, taças e cravos
nos servem como tácitos escravos –
cegas e estranhamente sigilosas.
Durarão muito mais que nosso olvido,
não saberão quando tivermos ido.
Arte Poética
Olhar o rio feito de tempo e água,
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que passam os rostos como a água.
Descobrir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar; sentir que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.
No breve dia ou no ano ver um símbolo
dos dias do homem e também seus anos,
e o longo ultraje converter dos anos
num rumor, numa música e num símbolo:
ver o sonho na morte, ver no ocaso
um ouro triste – tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora ou como o ocaso.
Às vezes, pelas tardes, uma cara
nos mira desde o fundo de um espelho:
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
humilde e verde. A arte é essa Ítaca,
de verde eternidade, e não prodígios.
Também é como um rio interminável
que passa e fica, e é o cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
A Um Gato
Os espelhos não são mais silenciosos,
nem mais furtiva a aurora aventureira:
eras, à luz da lua, essa pantera
que ao longe divisamos, temerosos.
Por obra indecifrável de um decreto
divino, te buscamos baldamente;
mais remoto que o Ganges ou o poente,
a solidão é tua, e o mais secreto.
Teu lombo condescende à vagarosa
carícia de uma mão. Tens admitido,
desde essa eternidade que é já olvido,
o amor de minha mão tão receosa.
Em outro tempo estás: és dom, suponho,
de um âmbito cerrado como um sonho.
Jorge Luis Borges (1899-1986)
Arte: Erik Desmazières - Passage Choiseoul, 1990
[poemas traduzidos por Renato Suttana]