sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Sensatez



‘Viver tudo que o presente nos oferece, como se não houvesse o amanhã’ é um pensamento perigoso, que impulsiona a atitudes irreversíveis, na maioria das vezes com amargas consequências. 

Nos leitos dos hospitais há muitas pessoas, prematuramente estropiadas, com os órgãos esfacelados: com a cabeça baixa, a maioria chora, arrepende-se das aventuras extravagantes dos dias da juventude. E isso também ocorre nas sarjetas e nos asilos. Pessoas que, levianamente, investiram tudo nos sonhos, hoje comem do pão alheio, são obrigadas a viver sob tetos que não lhes pertencem, dependentes que são da caridade de estranhos. 

É preciso romper amarras, voar e concretizar sonhos; é preciso viver com intensidade o presente que jamais se repete, porém nem tudo que queremos, podemos; e nem tudo que podemos, devemos fazer. 

Eis o lema, o leme e a bússola dos sensatos: Viver o presente com moderação, refletir sobre as lições do passado e preparar-se para as possibilidades do futuro.


terça-feira, 26 de novembro de 2013

O Imutável Devir



Perpétua e mutável elipse
movimento cíclico 
que vai que volta
que vai que volta

Sempre o mesmo Nunca igual
Tudo retorna Tudo se repete
em múltiplas variantes

E no exato momento
há a incidência da Luz
na Crisálida pronta para voar



Imagem:
Centro da galáxia NGC 254 na constelação de Piscis. 
90 milhões de anos-luz da Terra. 
Galáxia antiquíssima, berçário de estrelas.
[Captada pelo Telescópio Espacial Hubble da NASA]

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Anotações atrás da Cortina (4)


o velho palhaço sai de cena
para retocar o sorriso
para secar a umidade dos olhos
a ‘furtiva lagrima’

por que? por que? o Silêncio grita
o espetáculo tem que continuar?
as crianças têm sede de risos?
será que muito além do picadeiro
há uma filhinha que agoniza?
sussurros dos netos não-nascidos?
Sim - mas as crianças nada sabem

a vida em suas entranhas
guarda as ranhuras do abismo
e o breu da noite é uma rede
à espreita do último salto

o que parece ser, não é
e o que é, jamais será

desvala o riso
pelo friso do camarim
leito seco de um rio
que gargalha...

viver não é uma opção
viver é uma ordem



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Jorge Luis Borges: 3 Poemas




















 


As Coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
a fechadura dócil, as tardias
notas que não lerão os poucos dias
que me restam, o naipe, o tabuleiro,
um livro e dentro dele a emurchecida
violeta, monumento de uma tarde
por certo inesquecível já esquecida,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma aurora ilusória. Quantas coisas,
atlas, limas, umbrais, taças e cravos
nos servem como tácitos escravos –
cegas e estranhamente sigilosas.
Durarão muito mais que nosso olvido,
não saberão quando tivermos ido. 

Arte Poética

Olhar o rio feito de tempo e água,
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que passam os rostos como a água.
 
Descobrir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar; sentir que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.
 
No breve dia ou no ano ver um símbolo
dos dias do homem e também seus anos,
e o longo ultraje converter dos anos
num rumor, numa música e num símbolo:
 
ver o sonho na morte, ver no ocaso
um ouro triste – tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora ou como o ocaso.
 
Às vezes, pelas tardes, uma cara
nos mira desde o fundo de um espelho:
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nossa própria cara.
 
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
humilde e verde. A arte é essa Ítaca,
de verde eternidade, e não prodígios.
 
Também é como um rio interminável
que passa e fica, e é o cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
 
A Um Gato

Os espelhos não são mais silenciosos,
nem mais furtiva a aurora aventureira:
eras, à luz da lua, essa pantera
que ao longe divisamos, temerosos.
Por obra indecifrável de um decreto
divino, te buscamos baldamente;
mais remoto que o Ganges ou o poente,
a solidão é tua, e o mais secreto.
Teu lombo condescende à vagarosa
carícia de uma mão. Tens admitido,
desde essa eternidade que é já olvido,
o amor de minha mão tão receosa.
Em outro tempo estás: és dom, suponho,
de um âmbito cerrado como um sonho.
 

Jorge Luis Borges (1899-1986)


Arte: Erik Desmazières - Passage Choiseoul, 1990

[poemas traduzidos por Renato Suttana] 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Beethoven, o Prometheu das Artes



Mário de Andrade, em sua obsessão por nacionalismo, idealizou uma modificação na forma brasileira de escrever, e tentou criar uma 'gramatiquinha'. Não conseguiu. Não deu certo. Ninguém quis segui-lo. E por isso, felizmente, não conseguiu empobrecer a língua. Não exageremos os méritos de Sr. Mário de Andrade. Como poeta foi um experimentador; acertou sim, vez ou outra. E, sem dúvida, foi ficcionista de valor, deixando-nos, além de outras, o Macunaíma, uma narrativa burlesca que o autor chamou de ‘rapsódia’, nela acusando o povo brasileiro de não ter personalidade. Nisso acertou também. É sua obra mais lida e comentada. Vários de seus contos também merecem ser admirados pela trama e estrutura bem feitas. Mas a glória nacional deste autor reside em sua prosa ensaística. Por vezes estudando o folclore, ou tecendo críticas em todas as áreas da arte, literatura, cinema e... música, tornou-se uma importante figura da cultura brasileira. Mas não podemos também exagerar o seu legado histórico. A Semana de Arte Moderna eclodiria de qualquer forma, com ou sem Mário de Andrade. Era algo que já estava no ar.

De forma que o ensaísta escreveu também uma História da Música, tentando a todo instante ser original, e sempre fazendo questão de utilizar a sua gramática de simplificação. Tirando alguns disparates e pontos de vista muito particulares, a obra de Sr. Mário de Andrade Compêndio da História da Música tem a sua importância e continua sendo uma obra bastante lida. Mas está repleta de comentários estranhos, ‘non sense’, irreais, assim como o referido neste trecho sobre Beethoven:

“(...) e sabemos que (Beethoven) compunha às vezes com dificuldade extrema. E esta dificuldade não provinha da ânsia de perfeição musical, porém de preocupações intelectuais, de ordem literária, de ordem especialmente filosófica, que nada tem a ver com a Música. (...) deixou páginas literárias geniais pela grandeza e elevação das ideas, força, profundeza de expressão. Entre estas o Testamento de Heiligenstadt é um monumento imortal.”

Ora, se o historiador se baseia nesse documento para atestar as condições literárias de Beethoven por certo está muito equivocado. Nada há de arte literária genial no Testamento, e menos ainda na Carta à Amada Imortal, que é a declaração de amor mais caótica de que se tem notícia. Amamos essa carta porque ela nos diz que Beethoven, o solitário “Luiz”, após o desprezo de tantas, ao menos uma vez foi amado por uma mulher, ficando esta na obscuridade porque o amado quis ocultá-la ao mundo, por razões pessoais. Hoje sabe-se que era Antonie Brentano, uma grande mulher, de alma e posição nobres, e amiga de Beethoven, porém casada. Amou o músico, verdadeiramente, e por ele foi amada, sendo, entretanto, um amor que não se consumou por motivos ainda misteriosos. Semelhante ao Testamento de Heiligenstadt, a carta possui valor histórico, e nada mais. Não há um grande poeta submerso nesses textos. São muito parecidos com os escritos e os desabafos de um homem comum que sofre por amor. O que ambos os documentos destacam é que, a partir deles, o músico haveria de iniciar a peregrinação ao interior de suas obras verdadeiramente imortais no campo da música. Tais obras surgiram só após muitos tormentos. Sem dúvida, a expressão artística em Beethoven jamais se mostrou com a mesma facilidade como ocorrera a Haydn ou a Mozart. O Testamento de 1802 e a Carta de 1812 são uma espécie de partes de uma autobiografia, que registram as transições do músico: da primeira para a segunda fase, chamada de ‘Heróica’, e desta para a última fase. Cada um dos documentos fecha um período para iniciar outro. No entanto, possuem inestimável valor histórico, não literário.

Eis o que ocorre no Testamento de Heiligenstadt: nele relata-se o combate de um artista consigo mesmo para se manter vivo dentro dos requisitos de sua arte: a perfeição auditiva. E tal desabafo comove-nos extremamente e também nos glorifica, pois é a capacidade que tem o homem de renascer das próprias cinzas. Ali, Beethoven repete o mito de Prometheu e pressente a sua própria jornada de silêncio e solidão, muito semelhante àquele outro castigo imposto pelos deuses: um abutre devoraria o seu coração incessantemente, atado a uma montanha, sofrendo a dilaceração pela surdez, distante, cada vez mais, do convívio de outros homens. Eis o símbolo de Prometheu tão bem vivenciado em Beethoven. Porque, ao ver tantos e tantos adormecidos pela surdez e pela cegueira, imersos na banalidade dos valores burgueses, o músico, à medida que rouba a labareda dos deuses, acordando os homens com a claridade de sua música, perde-se do próprio brilho. Sente-o mas não pode apreciá-lo como os outros. Aí estão o fogo e o brilho de sua música – o despertar. Eis o verdadeiro significado das batidas retumbantes no início de suas sinfonias: quase todas iniciam semelhantes ao batido seco de um martelo ou de um gongo a soar, sempre querendo dizer: “Acordem ! Ergam a cabeça ! O mundo não é feito somente de comprimento e largura. Há ainda uma outra dimensão! Há uma altura e há uma profundidade em tudo! Ergam-se, aplumem a cabeça e os ouvidos! Enxerguem e ouçam as maravilhas que existem ao redor, na beleza que pode existir na vida. Cresçam como homens! E serão deuses também!” Assim é o início. E o que vem, logo depois, do interior dessa música, aqueles que a conhecem, sabem.

Todas as grandes obras de Beethoven são uma luta entre matéria e espírito, entre sombra e luz. O combate que se trava com o destino em toda Sinfonia No. 5 é trágico, mas no final surge do escuro túnel a esperança, seguida de júbilo. É a música mais esotérica escrita até hoje. É a arte mais profunda no que diz respeito à transitoriedade dos elementos diante da perenidade e da essência primordial da alma.

Apesar do elogio de Sr. Mário de Andrade ao compositor, sinto camuflado nas entrelinhas de todo texto um tom irônico, aquele tipo de deboche do nacionalista extremado apenas contido em expressão sutil. “(...) Porém, estou convencido que (Beethoven) poderia ser tão grande ou maior poeta, filósofo ou, quem sabe, imperador.”

Equivocara-se Mário de Andrade dizendo que Beethoven poderia ter sido um poeta ou filósofo, se quisesse. Quem disse que não o foi? Pois o compositor de Bonn recebeu pela música uma missão muito maior: ser tudo isso e mais um pouco. Filósofo do trágico e do júbilo, arquiteto gótico de invisíveis catedrais, ou, então, ‘poeta dos sons’, como ele mesmo se chamava. Mas não criou a sua obra imortal do nada; e nem poderia. Aqui está um de seus méritos e, ao mesmo tempo, doloroso sacrifício criativo. Foi lenta a gestação de quase todas sinfonias, concertos, sonatas e quartetos. E hoje permanecem para comprovarmos a perfeição: não precisam de retoques ou revisão, não há falhas, principalmente nas obras criadas no período ‘heróico’. Os defeitos que querem encontrar nas obras da última fase são apenas a incompreensão de nossa época diante de um gênio que já vivia com os olhos em tempos distantemente futuros.

Quase oito anos para dar-se por completa a Quinta Sinfonia! O mesmo tempo para a Sinfonia Pastoral. Quase vinte para surgir a Nona! Mais de uma década para ficar terminada a Missa Solemnis! Vinham-se-lhe, aos poucos, melodia, compasso e cadência, estrutura e conteúdo, orquestração e vozes e, quando surgiam, lapidadas e puras, pela orquestra ou pelo piano, pelo conjunto de câmara ou coral a ele soavam como um alívio, como mais uma pedra angular defronte ao templo de sua travessia, a do artista sacrificado pela dor de não perceber exatamente o que criava; e dor humana de não ouvir aplausos e gratidões. E, ainda assim, o resultado de tudo isso nas obras não é grito raivoso, não é lamúria, não é estertor. É cântico. É água. É luz. E assim continuará: canção e luminosidade, enquanto brilhar no mundo algum archote de civilização.

Por fim, o escritor Mário de Andrade acertou. Beethoven poderia ter sido imperador... Mas quem disse que pela música ele não o foi? E, acaso, não continua ele pertencendo à uma estirpe bem mais gloriosa do que a de qualquer Bonaparte?

Com humildade, reverencio Beethoven e a grandiosa obra que nos legou. Continua sendo para mim o verdadeiro Prometheu da Arte. Sim, compadecido da escuridão humana, roubou a luz dos deuses para entregá-la aos homens através da mais profunda música escrita até hoje. 

__________________________

Abaixo, o monumento a Beethoven na cidade natal, Bonn. 
O semblante do gênio permanece como foi em vida, 
com o olhar altivo, abstraído em longínquos horizontes.

Ludwig van Beethoven (1770-1827)



Beethoven em retrato de 1823, do pintor Waldmüller. Completamente surdo, o músico criava a 'Nona Sinfonia', cujo final, sobre poema 'Ode à Alegria' de Schiller, tornou-se o Hino de toda a Europa.

E, ao lado, o retrato de Toni Brentano, a verdadeira Amada Imortal, a única mulher que amou Beethoven e para quem ele escreveu a famosa Carta. Após um século e meio do episódio, por fim o mistério foi desvendado pelo admirável musicólogo americano Maynard Solomon, cuja árdua investigação, em 1977, resultou em provas tão convincentes que não deixam mais dúvidas sobre a identidade de Brentano, tanto tempo oculta.



sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Nenhum Homem é uma Ilha



"Nenhum homem é uma ilha isolada", diz o belíssimo poema de John Donne.

Ninguém basta-se a si mesmo.

Poderíamos pensar dessa forma: é possível que haja uma teia singular que une todos os homens, ainda que indivíduos completamente diferentes? Há uma sincronia que nos entrelaça na mesma ideologia e na mesma jornada? A morte de um único homem diminuiria o tamanho do continente e seu isolamento tornaria menor a humanidade? Talvez sim, talvez não.

Ao homem também precisa existir o direito de se isolar, se assim for a sua vontade, com o objetivo de refletir, de se corrigir e de se ampliar interiormente. Aquele que encontrar a si mesmo estará apaziguado. Esse ato também é uma contribuição ao mundo.

Os grandes mestres, em determinada etapa da vida, isolaram-se: Buda sob a figueira, Jesus nos desertos. Isolaram-se para que o encontro fosse possível; para que, através da individualidade compreendida, a pluralidade fosse alcançada. A partir dessa compreensão tornaram-se prontos para acrescentar algo ao povo de onde vieram.  

O Ocidente vê a doação ao próximo como a mais bela forma de subjugar o ego através do amor altruísta. Já no Oriente, na Índia principalmente, compreende-se que 'santo' é aquele que consegue refrear os próprios desejos. Isolado, imerso nas matas mais insalubres, praticando a abstinência, evitando todas as sedes e as fomes que o desviem da rota da purificação, o indivíduo sai vitorioso na guerra contra a própria ignorância. Um homem assim é considerado quase 'deus', porque ao se iluminar, acrescenta um ponto de luz no Universo. 

Portanto em cada povo há um conceito de iluminação. Alguns compreendem que o homem não é e não deve ser uma ilha, que precisa de se unir ao continente; outros crêem que sim, que é necessário que se isole, que proceda assim para se compreender melhor.

Em verdade, não será o homem uma ilha? Todos homens, ilhas esparsas no oceano? Algumas, estreitas; outras, muito largas, tão vastas que podemos chamar de continentes? Mas não importa o tamanho das ilhas. O importante é que todas ilhas possuam pontes, que se comuniquem entre si, que se permitam a permuta de riquezas e o aprendizado mútuo. 

Concluo que nenhum de nós possui visão de águia. Cada um pensa e vê uma parte do mundo. Somando nossos olhos é possível enxergar um imenso panorama. A amizade, a solidariedade e o altruísmo são pontes que nos aproximam. Mas é necessário que a individualidade seja reverenciada, que o ensimesmamento seja livre, que seja respeitada a vontade de ir, de vir, de se retirar no momento desejado. Só assim, creio eu, cada homem em sua ilha interior será uno e ao mesmo tempo universal.   


Fotografia: Solitude, de Roberto Cambusano

domingo, 1 de setembro de 2013

Reflexão



Como é que se molda o barro
e como é que se lhe dá consistência

sem evitar a dor pela lâmina do cinzel
ou a queimadura pelo cozimento no fogo?

                                              

domingo, 28 de julho de 2013

Li T'ai-Po: Caracteres Eternos



Alguns de meus versos preferidos de Li T’ai-Po. É também conhecido por outros nomes: Li Po ou Li Bai. O certo é que viveu no século VIII, no período da Dinastia Tang, considerada a era de ouro das artes chinesas. Li Po e Tu Fu talvez sejam os maiores poetas que a China já conheceu.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Praça Paulistana



A multidão solitária - as ordenadas gentes
caminham silentes para lugar nenhum.
Há eco nas pedras, em cada passo o medo.

Alarido, o triturado silêncio, a Babel moderna.
Criaturas à espreita de feriados, vitrines, ou
trigo - rindo nos circos ou na arena morrendo.
                                   
Até quando? marionetes de âmbar e ébano,
indo manipuladas pela ironia de líderes,
essas promessas que jamais se realizam.

E pessoas vaidosas colocam nas urnas o voto.
Nos bastidores os escolhidos trocam risadas:
-Povo não governa. -Democracia é doce ilusão.
                                   
Na capital paulista há uma praça chamada Luz.
Por ela, dia-a-dia, muitos passam apressados,
e não olham o busto de Giuseppe Garibaldi.

Nele ninguém mais lê uma antiga inscrição,
para o povo escrita: “Sociale Giustiza”.
Nítida, mas apagada, no tempo esquecida.


[1983-2013]


domingo, 26 de maio de 2013

Pablo Neruda: O Grande Oceano - Enigmas (Peixe Encerrado no Vento)



Poucos poetas criaram metáforas tão mágicas como o chileno Pablo Neruda. Era mestre em (re)inventar o sentido das palavras. Nessa viagem nenhum dicionário pode ser útil, porque só mesmo a intuição pode decifrá-las. Por isso, quanto mais rica a mundividência, mais vasta a colheita.

Alguns críticos azedos enxergam mal a lírica de Neruda e acusam-na de sentimentalismo piegas; outros torcem o nariz dizendo que já é gasto e ineficiente o socialismo de seus versos. Ora, essas opiniões vêm de alguns cabeças de ovo, intelectuais sem sensibilidade, que não conseguem ver além da semântica ou da estrutura do texto. Para compreender a poesia é preciso muito mais do que um cérebro afiado. Concordo com Hermann Hesse que disse certa vez, ao ler uma crítica incompreensiva sobre Proust: “Quero mais é que cresçam musgos sob a língua desses críticos.”

O poema abaixo foi muito bem utilizado no filme “Ponto de Mutação”, da obra de Fritjof Capra. Não li o livro, mas vi o filme. É interessantíssmo! E o recomendo a todos: Um político, uma cientista e um poeta discutem problemas físicos e metafísicos, tentando encontrar um caminho para a salvação da Humanidade. No filme, no momento em que o político totalmente perdido não encontra um caminho para a preservação do planeta, no instante em que a cientista tenta encontrar uma solução em seus teoremas, e a física quântica timidamente tenta ajustar o ponteiro de sua bússola, então o escritor recita Neruda. A poesia surge talvez não para esclarecer, mas para nos consolar e sugerir humildade diante das dimensões labirínticas do Universo.

Grandes poetas sempre existiram e continuarão existindo, alguns mais geniais, outros menos, mas todos passam horas e horas lapidando o texto com o intuito de nos presentear com beleza estética e espiritualidade, seja ela doce para o nosso enlevo, seja amarga para nos alertar e nos incitar ao crescimento. Podemos comprar os seus livros, mas a riqueza que nos oferecem... jamais podemos pagá-la o suficiente.

Viva Neruda !

Enigmas


Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre
as suas patas de ouro e vos respondo: O mar o sabe.
Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente?
Que espera? Eu vos digo, espera como vós, o tempo.
Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.

Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.
Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré astral?
E sobre a construção  cristalina do pólipo tereis
embaralhado, sem dúvida
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactita que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?

Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.

Eu não sou mais do que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, medidas
de um tímido hemisfério de laranja.

Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.


(de Canto Geral, parte XIV: O Grande Oceano)

Pablo Neruda (1904-1973)

[tradução de Paulo Mendes Campos, 
revista por Maria José de Queiroz]

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Décio Pignatari: O Jogral e a Prostituta Negra (farsa trágica)


Onde eras a mulher deitada, depois
dos ofícios da penumbra, agora
és um poema:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

É à hora carbôni-
ca e o sol em mormaço
entre sonhando e insone.

A legião dos ofendidos demanda
tuas pernas em M,
silenciosa moenda do crepúsculo.

É a hora do rio, o grosso rio que lento flui
flui pelas navalhas das persianas,
rio escuro. Espelhos e ataúdes
em mudo desterro navegam:
Miras-te no esquife e morres no espelho.
Morres. Intermorres.
Inter(ataúde e espelho)morres.

Teu lustre em volutas (polvo
barroco sopesando sete
laranjas podres) e teu leito de chumbo
têm as galas do cortejo:

Tudo passa neste rio, menos o rio.

Minérios, flora e cartilagem
acodem com dois moluscos
murchos e cansados,
para que eu te componha, recompondo:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

(Modelo em repouso. Correm-se as mortalhas das persianas. Guilhotinas de luz lapidam o teu dorso em rosas: tens um punho decepado e um seio bebendo na sombra. Inicias o ciclo dos cristais e já cintilas).

Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câma-
ra lenta, levantas a fronte e propalas:
“Há uma estátua afogada...” (Em câmara lenta! – disse).
“Existe uma está-
tua afogada e um poeta feliz (ardo
em louros!). Como os lamento e
como os desconheço!
Choremos por ambos.”

Choremos por todos – soluço, e entoandum
litúrgicos impropério a duas vozes
compomos um simbólico epicédio AAquela
que deitada era um poema e o não é mais.

Suspenso o fôlego, inicias o grande ciclo
subterrâneo do retorno
às grandes amizades sem memória
e já apodreces:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.


*** 
Décio Pignatari (1927-2012)