quarta-feira, 29 de julho de 2009

Villa-Lobos: Choros No.6 por Roberto Tibiriçá




Este CD é maravilhoso! O que encanta e impressiona aqui é a excelência de Roberto Tibiriçá regendo o Choros No.6 de Villa-Lobos. Encarnou de tal forma o espírito do criador da obra que duvido existir outra interpretação que a supere. Toda vez que a ouço não consigo conter o entusiasmo e grito: Bravo!!!! Grande Villa-Lobos! Grande Roberto Tibiriçá e músicos da Orquestra Sinfônica Petrobras Pró Música! Sem qualquer dúvida, deram mais vida a essa obra-prima pertencente aos Choros, a mais importante série do maior compositor brasileiro.

O Trenzinho do Caipira, como todos sabem, faz parte da belíssima suíte 'Bachianas Brasileiras No.2'. Escrita em 1930, a peça com o título principal de 'Toccata' é uma pitoresca viagem pelas cidades do interior paulista sobre as rodas sacolejantes de uma maria-fumaça. Em seus tempos de Paris, Villa-Lobos ouviu a fantasia orquestral Pacific 231 de Arthur Honegger, e transpôs a ruidosa locomotiva de lá para as paisagens rurais daqui. Sem exagero nacionalista, a orquestração do Villa no Trenzinho do Caipira ficou muito mais bela e criativa e, pela comovente melodia, mostra muito mais calor humano.

O Choros No.6, que a antecede em quatro anos, é também um percurso de trem, mas desta vez pelo Rio de Janeiro, estado natal de Villa-Lobos. A viagem inicia na cidade do Rio com a festa do Carnaval; depois continua pelas pacatas cidades interioranas, relembrando valsas e modinhas de seresteiros em coretos e praças, costumes já nostálgicos; há também a evocação da natureza, sugere os rios e a vegetação da mata atlântica. O percurso termina da maneira como iniciou: na apoteose carnavalesca da avenida carioca. Trata-se de uma peça repleta de cores e ritmos, que nos deslumbra: é som, sabor e cheiro de um Brasil legítimo, cuja diversidade de paisagens e riqueza musical é motivo de orgulho. O fato da gravação ser ao vivo consegue mais ênfase a esse arrebatamento.

Já o Concerto para Piano e Orquestra em Formas Brasileiras, de Hekel Tavares, apesar de belo e rico em melodias folclóricas, não é uma peça tão sensacional quanto as de Villa-Lobos. Não há como camuflar essa constatação, o que não significa falta de qualidade da obra. É um concerto encantador, ainda mais sendo Arnaldo Cohen o pianista.

Os apreciadores da boa música precisam conhecer mais os nossos mestres clássicos, os antigos e os modernos. São muitos, mas cito alguns dos maiores, que criaram obras do mesmo nível dos grandes compositores europeus: Pe. José Maurício, Carlos Gomes, Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Lorenzo Fernández, Camargo Guarnieri, César Guerra-Peixe e Cláudio Santoro.

Quem se sentir atraído por essa viagem, e resolver se aprofundar nas obras desses mestres, não se arrependerá.

Aqui, o belo CD com as obras de Villa-Lobos e Hekel Tavares, presente do maestro Tibiriçá a este blog e a todos que apreciam música de qualidade. 

Download MP3 320 kbps:
VillaLobos.HTavares.Tibirica.Cohen.zip




quarta-feira, 22 de julho de 2009

Paráfrase e Alegoria


Os Três Filhos Ingratos (conto-paráfrase)


1 Deus, após criar o mundo e todas as coisas, criou também o homem. Depois descansou, porque amassar, moldar, assoprar e dar vida ao barro não é tarefa para qualquer um.

2 Aconteceu que nesse momento de cochilo, Ele permitiu que o Diabo criasse a mulher, a mesma que induziu o homem a comer a maçã vermelha, descobrindo assim, ambos, o desejo para sempre e todo o sempre.

3 “Serás Deus”, disse o Diabo em formato de Serpente, e riu às largas, lançando esse gracejo burlesco, alimentando no primeiro casal a sua própria ambição de usurpador. E assim foi criada a verdadeira raça que rasteja.

4 Deus tomou ciência da traição de ambos e ficou irado ao observar os atos de sua obra. Chorou pelo homem. Assumiu o erro, pesaroso. Quanto à mulher, fechou um olho, porque não era criação diretamente sua.

5 Um pouco confuso, Deus sorriu no canto dos lábios, que é o modo dos inteligentes diante das futilidades das coisas: “Essa que aqui está é mais filha da Natureza do que minha. E vejo que o anjo rebelde, outrora filho predileto, fez mais uma de suas travessuras. E sendo essa mulher mais neta do que filha, e sendo todos partes de mim, todos os erros eu assumo. Mas é preciso ministrar um castigo provisório”.

6 E abaixou a cabeça, um pouco envergonhado, evitando olhar para cima, temendo o descaso do outro Deus, mais poderoso e que habita alturas mais inacessíveis. Porque não é de duvidar que, nessa hierarquia de Deuses, perdem-se de vista os patamares. Acima de um Deus sempre existe outro Deus mais lúcido e menos sujeito a falhas, sugerindo a nós, vermezinhos, a idéia de quão distantes estamos da redenção, e que nos consolemos uns aos outros nessa condição de sinuosa vertigem.

7 Foi assim que o Deus de nosso círculo celestial mais próximo teve que agir: expulsou a mulher e o homem do Paraíso, condenando-os a tirar do próprio suor a sobrevivência na Terra, deixando-lhes como diversão os prazeres da carne, bem como as delícias da procriação para terem a ilusão de serem pequeninos deuses.

8 Tu, Adão, que veio de um barro gelatinoso, sairás a trabalhar a argila e construirás cidades e retornarás à mesma poeira de que foram feito teus ossos e tua carne. Serás como aquela matéria grosseira, colado às pedras, mal acabado, almejando individualidade mais amena. Às vezes obtuso, às vezes brilhante, reinarás sobre os bichos da terra.

9 Eva, tu, composta de um pedaço de osso, mais resistente e mais refinada, serás o complemento. Onde falhar a praticidade de Adão, tu reinarás pela intuição nos assuntos da alma. Ainda assim estarás associada à matéria. Quando não estiveres rastejando em gemidos de parto, estarás cumprindo o ciclo da lua, limpando o sangue das pernas. Será tua paga pela curiosidade no episódio do jardim, por seres tão tola ao acreditares nos apelos da serpente astuta. E, Homem, tu, mais tolo ainda por não refletires, estarás obrigado por lei a amparar a tua mulher nos dias de fluxo. E aconselho-te que tenhas paciência! Senão os teus dias serão bem piores naquele inferno para onde ireis.

10 Ambos conhecereis o declínio da beleza. Chegará o tempo, Adão, que o teu vigor decrescerá a olhos vistos. Não coordenarás os teus passos. As tuas vistas ficarão turvas. E qualquer moleque de aldeia direcionará as tuas pernas para caminhos alheios à tua vontade. Eva, que vives a valorizar as delicadezas, tu, apesar da sedução do rosto belo e das carnes firmes e dos peitos erectos e das coxas roliças e do púbis ardente, um dia também enrugarás como um pergaminho e tornarás ao pó e nada mais!

11 Homem e Mulher criarão a vida a partir do fruto proibido, mil vezes remoído e triturado, a gotejar um sumo doce e amargo nos vales da Terra. Mas valerá a pena, pois conhecereis o gozo no cio em escandalosos uivos de felicidade. Serão rápidos, é bem verdade, mas vão compensar toda a arrastada dor da existência. Os chistes amorosos e o jogo das seduções não vos diferenciarão dos outros animais da terra. Haveis de cometer os mesmos desvarios e não sereis superiores aos símios, ou aos cães ou às porcas em cio. Rolareis na mesma lama, e perdereis o sentido da dignidade todas as vezes que o desejo correr em vosso sangue. Chegará o tempo em que o prazer não será suficiente para amenizar o desespero pela ausência de afeto. Os filhos de Adão não vão respeitar as filhas de Eva, fechando os olhos à necessidade que elas têm sobre as coisas do coração. E como vingança elas vão amordaçar as próprias entranhas para que eles não as penetrem totalmente. A estirpe de Adão haverá de pensar que possui o domínio, ouvirá uivos (simulados) mas, lá no fundo bem fundo, só haverá o ressentimento e posse nenhuma. O membro de Adão chegará apenas nas proximidades do coração de Eva. O abismo da solidão reinará sobre a alma humana. E nada mais.

12 De teu ventre, Eva, nascerão os filhos para que o vazio da existência te seja ilusoriamente preenchido. Abel e Caim, assim serão chamados os da progenitura. Na testa de um, desejoso da prática do bem, estará a marca da ingenuidade, do sorriso manso; o outro será astuto e desprovido de escrúpulos. E o restante da imensa prole será a dos indecisos que correm como o vento sem direção sob a liderança efêmera ora dos bons ora dos maus. Saiba desde já que de todas as maneiras os maus abaterão os bons. E a honestidade será motivo de riso. Nos malfeitores o arrependimento pouco durará, porque na terra do suor e das delícias pouca serventia há em ser bom. E os pais criarão os filhos para o mundo, e estes certamente vão dizer impropérios e vão se lançar às estradas. Porque desde muito cedo os filhos hão de rir dos conselhos e não vão respeitar as claras madeixas dos velhos, porque naturalmente nada hão de saber das armadilhas do mundo e do vinagre da vida. E quando estiverem aptos para a compreensão e retornarem ao lar para as saudações e gratidões já há muito tempo estarão os genitores irmanados com a poeira da terra.




13 Não queirais me indagar o motivo de tudo isso. Apenas vos digo que dou a prisão para que com o esforço do suor conquisteis a própria abundância. Por ele há de vir a libertação. O fruto que proibi e na curiosa comilança me desobedecestes é o conhecimento que só deveria chegar-vos no momento certo. Tu e ela roubaram o meu jardim, auxiliados por aquele que rasteja, o ambicioso maior. Sim, há inocência em vossos atos. Mas enxergardes, e coisas vistas são coisas conhecidas. Necessário é que arqueis com o peso desse antecipado conhecimento, colhido no impulso da inexperiência. Por isso, dou-vos a dor para que vos liberteis por vós mesmos. No fim de tudo, de todo conhecimento burlado, reinará a Vida. Eva, tu que roubaste a maçã, por muitos milhares de anos verterás o sangue que regará os nascimentos de onde surgirão civilizações. Serás chamada a Mãe da Vida, e por isso redimirás a ti e ao teu companheiro, Adão. E através desse teu ventre de Terra até mesmo o arcanjo rebelde encontrará o portal do retorno. Eva, o teu sangue será a redenção de todos os pecados gerados pela antecipação. Não me queirais mal, filhos e neta. Sou apenas Pai e Avô. E quando vos transformardes, vós e toda a Humanidade, em Deuses também, quando tereis encontrado a imagem da perfeição que almejo para vós, então, abrirei novamente as portas de meu Jardim.

14 O Supremo, por fim, dizendo tudo isso, de repente parou os gestos e ficou olhando o seu jardim. Talvez risse da exuberância de seus frutos proibidos. E não disse mais nada. Indicou a porta de saída aos dois filhos ingratos. Cansado de tudo, ergueu-se e foi empurrando também a Serpente e sua hoste para o abismo.

15 Desde então, o único conselheiro do homem e da mulher tem sido esse mesmo irônico Diabo, que às vezes se veste de misericordioso e cria religiões só para variar.


16 E Deus permaneceu triste, desamparado e sozinho em seu Paraíso. Os arcangélicos Miguel, Rafael e os outros, bem como os serafins e os querubins eram bons e eram justos, mas não podiam compreender a dor humana do Divino.


O Quarto Filho Ingrato (alegoria)
 
1 Então Deus resolveu criar um outro tipo de filho para fazer-lhe companhia.

2 “Serás masculino e feminino e essa será a única Imagem em cada lado do espelho! Como Espírito serás feito de excessiva inteligência e de exacerbados sentimentos. Revestido de sete cores, de sete sons, de sete palavras, serás profundamente conhecedor da beleza que existe tanto na luz como nas trevas.”

3 Mas esse novo filho cansou-se da companhia de Deus e quis fugir para conhecer a Terra, que é, como foi dito e repetido, exílio de dor e de delícias. Aqui ficou durante um tempo razoável e cansou-se também dos homens e de suas tolas vaidades e de suas estúpidas paixões.

4 E retornou ao Céu, pedindo humildemente a Deus: “Tanto o Céu como a Terra me aborrecem e ao mesmo tempo me fascinam. Quero liberdade para viver em ambos os lugares. E quero também uma diversão para preencher o tédio da existência: quero criar, ter a alegria da criação como o meu Pai tem.”

5 E Deus inclinou-se, e falou quase em sussurros, próximo ao ouvido do indeciso: “Filho ingrato! Dou-te o Céu e queres a Terra. Foges de mim para viver naquele antro e logo para cá retornas. Não queres nem um nem outro e ambos ao mesmo momento. E agora queres o dom da criação?”

6 E responde o filho: “Sim, meu Pai! Quero compreender a lactescência da Vida.”

7 “Queres imitar Deus?” – perguntou o Divino. “Mas nenhum ser imita o Criador impunemente. Queres criar? Pois bem, então criarás. Vais conhecer o dom da criação.”

8 Entusiasmado, responde o filho: “É o que mais quero. Nenhuma alegria pode ser mais profunda do que o ato da invenção. Estou disposto a pagar qualquer preço para ter esse dom a pulsar em todo o meu corpo, em minha mente e na totalidade de minha alma.”

9 E Deus, coçando a imensa e longa barba, sempre sorrindo e rindo pelo canto dos lábios, disse: “Sim, o terás. Serás sempre designado como ‘o escolhido, o artista’, como ‘aquele que tem o dom de ver e ouvir o que outros não podem’. És todo livre. Concedo-te a liberdade de escolha. Um poeta ? um pintor? um músico? Saibas que por onde caminharem os teus pés, hão de te chamar: ‘Ó mensageiro do Céu e da Terra!’. Entre raças e nações serás admirado, mas com inveja e medo. Lembra-te sempre: terás a admiração de quase todos mas nunca serás amado pelo dom que possuíres. Para os homens práticos serás no fundo apenas um desprezível doidivanas. E aqueles de cujos olhos lágrimas florescem diante da beleza oferecida, pelas costas tratar-te-ão de egocêntrico e arrogante. Olhar-te-ão com desconfiança, ainda que beijem as tuas mãos.”

10 E o Sereníssimo interrompeu aqui o colóquio, abaixou a cabeça cansada, olhou longamente a pele enrugada da mão, contemplou os dedos velhos, as falanges muito velhas, aqueles mesmos dedos com que compôs a poesia do firmamento e a música das esferas, os mesmos com que pintou a beleza dos mundos. E com aquele risinho amargo foi continuando:

11 “Sim, viverás o êxtase primordial! Mas também conhecerás a distância e o isolamento. Terás a chance, filho dileto, de compreender a solidão em que vive o teu Deus. E, assim, seremos companheiros na mesma alegria ...e na mesma dor.”


***


Ilustrações: pinturas e gravuras de William Blake (1757-1827)
The Ancient of Days (1794) - The Body of Abel funded by Adam and Eve (1825) - Urizen plays before the world he has forged (1790) - Elohim creating Adam (1795)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Hermann Hesse: Poemas Escolhidos


"A cada chamado da vida o coração
deve estar pronto para a despedida e para
novo começo, com ânimo e sem lamúrias,
aberto sempre para novos compromissos.
Dentro de cada começar mora um encanto
que nos dá forças e nos ajuda a viver."


 Foto: ano de 1920. 
Hesse caminhando pela região da aldeia de Montagnola, 
no Ticino, época em que iniciava o romance Sidarta.



Comemora-se hoje o nascimento do grande escritor Hermann Hesse. Ano de 1877, em Calw, pequena cidade do estado de Württemberg, sul da Alemanha.

No início do século, Peter Camenzind (1904), primeiro romance do autor, fez grande sucesso na Alemanha, devido ao tom lírico da obra. O realismo e o excessivo naturalismo imperavam na época e saturavam pelo estilo seco. A narrativa de Hesse, evocando a atmosfera bucólica de montanhas e pequenas cidades, fez reviver um passado medieval e romântico, tão caro aos alemães. Foi uma novidade, o que resultou em fenômeno de vendas. Em 1906 publicou o segundo romance Sobre as Rodas. Este não repetiu o sucesso do primeiro. Em Peter Camenzind o personagem central era um poeta. Talvez por isso, pelo tema ter agradado tanto os leitores, escreveu mais dois romances sobre artistas: Gertrude (1910) ambientado no mundo da música, e Rosshalde (1914), sobre um pintor.  Dos três o último é o melhor realizado, enquanto obra de ficção, embora tenha nítidos traços autobiográficos. Na época Hesse vivia os mesmos problemas familiares. Criador e personagem, artistas bem sucedidos, porém fechados em si mesmo. Ambos perdem-se da esposa devido à incomunicabilidade humana. Diga-se de passagem, estas obras receberam o aplauso dos leitores e estabilizaram a vida financeira do autor.

A ficção neo-romântica de Hesse mudou radicalmente no confronto espiritual com a guerra de 1914. Com pseudônimo, em 1917, publicou Demien, que foi um marco para a geração do pós-guerra. E ainda hoje é visto como o mais significativo romance do movimento expressionista. Além do valor artístico e histórico, a obra é também considerada a maior contribuição de Hermann Hesse à literatura, pois nessa data foi introduzida pela primeira vez o tema da psicanálise, ciência surgida de Freud e ampliada por Jung. Em 1922 apareceu Sidarta, romance-poema, uma das obras mais amadas de Hesse, pela sabedoria oriental que soube tão bem adaptar aos problemas existenciais de cada um. Mas a maior contribuição do autor à literatura propriamente dita, e que o tornou conhecido no mundo todo, foi o sétimo romance O Lobo da Estepe, de 1927, obra experimental, considerada por muitos como obra-prima do mesmo valor de romances inovadores do período entre-guerras: Em Busca do Tempo Perdido de Proust; Ulisses de Joyce; O Processo de Kafka; A Montanha Mágica de Mann; Os Moedeiros Falsos de Gide; e O Som e a Fúria de Faulkner. Assim é O Lobo da Estepe: trata-se de obra completamente diferente das anteriores, tanto pelo tom seco e amargo, como pela técnica literária labiríntica. E chega a ser profética, pois antevê os horrores da segunda guerra, que eclodiria na década seguinte. Em 1930 é publicado Narciso e Goldmund, outro grande romance que também utiliza a psicanálise de maneira rica e profunda, além de vários recursos e temas de obras anteriores: transcorre em um passado distante, talvez medieval, e o personagem também é artista, um escultor.

Por fim, após 12 anos, em 1943 publica o nono romance O Jogo das Contas de Vidro, muito mais extenso do que todos os outros e muito mais elaborado. Desta vez, a história se passa em um país hipotético de um futuro distante. A obra é magistral, várias vezes comparada ao Wilhelm Meister de Goethe. Trata-se do último romance de Hesse. Ao menos, no campo da Ficção é o seu Testamento literário. O autor ainda viveu 20 anos após o lançamento. Publicou outros gêneros, mas nenhum outro romance.

Os leitores e a crítica se dividem, quando tentam destacar dentre esses nove romances o maior de Hermann Hesse. Metade diz que é O Lobo da Estepe; a outra, afirma categoricamente que é O Jogo das Contas de Vidro. Em verdade, é uma tarefa difícil. E não há necessidade de confronto, pois obra artística não é nenhum competidor almejando a primeira posição do pódio. Cada leitor escolhe aquela com a qual mais se identifica. Para mim, a maior obra de Hesse não é nenhuma das duas mencionadas. Escolho Sidarta, que tem sido, desde a adolescência, um de meus guias espirituais imprescindíveis. Sinto uma enorme gratidão pelo autor por ter escrito essa dádiva de sabedoria. Aprecio também, particularmente, a forma como foi escrito: não deixa de ser um romance, mas é sobretudo um poema em prosa; utiliza a cadência e a sonoridade sensual da poesia hindu, atingindo em alguns pontos a mística dos hinos védicos, tudo isso somado às características dos líricos alemães, Eichendorff e Mörike, que Hesse tanto amava.
 
No contexto, devemos ainda mencionar algumas narrativas curtas no gênero da ficção: as novelas ‘Knulp’ (1915) e ‘Viagem ao Oriente’ (1932), e os maravilhosos contos ‘Na Velha Estalagem do Sol’, ‘Bela é a Juventude’, ‘Augusto’, ‘Iris’, ‘O Poeta’, ‘Sonho de uma Flauta’ e ‘Encarnação Hindu’, este último inserido em O Jogo das Contas de Vidro. Na área da não-ficção há os 3 ensaios de Olhar sobre o Caos (1923), tão admirados por T. S. Eliot, e os artigos pacifistas coletados em Sobre a Guerra e a Paz (1946), de valor histórico. E, por fim, recordo-me daquelas pequenas obras que Hesse publicou ao longo  da vida, contendo prosa intimista e versos ilustrados com suas próprias aquarelas expressionistas. Caminhada (1920) é um desses pequenos grandes livros, talvez o mais encantador, o mais amado pelos leitores da obra hessiana.

Hesse tornou-se famoso mundialmente como romancista e contista. Contudo, e é fato curioso, apesar da importância da prosa de ficção, não foram os romances e sim a poesia que escreveu durante a vida toda, paralelamente à prosa, que lhe concedeu o grande Prêmio Nobel de Literatura. Os organizadores da Academia Sueca preferiram premiar o autor pelo livro As Poesias de 1942, que é o conjunto de todos os poemas escritos, desde 1898 até aquela data, porque reconheceram que a obra poética do autor alemão “é atemporal e sobreviverá à ficção”.

É opinião deles. A maioria dos críticos não concorda. Sem dúvida, a poesia de Hesse é muito bela e sensível, mas é a parte mais tradicional de sua obra. Seria um epígono se não tivesse personalidade. Salvo em algumas ocasiões, nos versos escritos durante as crises existenciais, toda a lírica hessiana é um eco do romantismo de meados do século anterior a ele. Nesse sentido, o autor é mesmo o legítimo herdeiro dos grandes poetas românticos do século XIX: Joseph Einchendorff e Edouard Mörike.

A poesia de Hermann Hesse é muito conhecida nos países de língua alemã. O autor, enquanto poeta, é considerado 'clássico' e seus versos fazem parte, há tempos, dos currículos escolares da Alemanha. No entanto, apenas alguns poemas aparecem com frequência em antologias européias e mundiais.

Como homenagem a esse grande escritor, que jamais será esquecido, tanto pela ficção quanto pela poesia, transcrevo aqui alguns de meus poemas preferidos. Em honra à sua memória, escolho a poesia, porque Hermann Hesse se considerava antes de tudo um poeta, um lírico alemão. Ele mesmo, na idade de 14 anos, disse: “Serei poeta ou nada.” E completou, na velhice: “Escrevo romances e contos por ocasião; poeta sou, por vocação.” O grande Thomas Mann, que considero o maior escritor do século XX, amigo de Hesse, gostava de compará-lo a um 'rouxinol suábio' pela delicadeza musical de seus textos. Tinha toda a razão.

E, da mesma forma, somos imensamente gratos ao poeta brasileiro Geir Campos que traduziu esses versos, captando com mestria o ritmo e a essência lírica de Hesse.



Sorte

Enquanto vives perseguindo a sorte,
não estás pronto para ser feliz,
ainda que seja teu o que mais queres.

Enquanto te lamentas do perdido,
e tens metas e não te dás descanso,
não podes saber o valor da paz.

Só quando a todo anelo renuncias,
sem objetivos nem desejos mais,
e já não dás à sorte qualquer nome,

já a maré dos eventos não te atinge
o coração, e se acalma tua alma.

(em “No Caminho”, 1911)

Ramo em Flor

Para cá e para lá
sempre se inclina ao vento o ramo em flor,
para cima e para baixo
sempre meu coração vai feito uma criança
entre claros e nebulosos dias,
entre ambições e renúncias.
Até que as flores se espalham
e o ramo se enche de frutos,
até que o coração farto de infância
alcança a paz
e confessa: de muito agrado e não perdida
foi a inquieta jogada da vida.

(em “Música da Solidão”, 1915)

A Meu Irmão

Quando revemos nossa casa, agora,
andamos encantados pelos cômodos,
ficamos longo tempo no jardim
onde – meninos levados – brincávamos.

E de todos os outros esplendores
que pelo mundo afora conquistamos,
nenhum mais nos alegra nem agrada
quando o sino da igreja faz-se ouvir.

Calados repisamos velhas trilhas
cruzando o verde terreno da infância:
e elas no coração tornam-se vivas,
grandes e estranhas, como um belo conto.

Mas tudo o que estaria à nossa espera
já não há de ter mais o puro brilho
de outrora – quando, ainda rapazolas
no jardim caçávamos borboletas.

(em “Música da Solidão”, 1915)

A Noite

Rescende a flor na várzea,
longínqua flor da infância
que só de raro em raro ao sonhador
abre o velado cálice
e deixa ver – cópia do sol – seu interior.
Por cima das cordilheiras azuis
cega a noite vagueia
puxando sobre o seio a veste escura:
sorrindo esparze a esmo
sua dádiva – o sonho.
Curtidos pelo dia, em baixo dormem
os homens: têm os olhos
cheios de sonhos,
alguns viram o rosto suspirando
para as flores da infância
cujo aroma os atrai de leve na penumbra,
e ao severo chamado paternal do dia
confortados se alheiam.
Para o exausto, é um alívio
refugiar-se nos braços da mãe
que os cabelos do sonhador alisa
com mãos despreocupadas.
Somos crianças, logo nos fatiga o sol
- ainda que seja para nós destino e futuro sagrado –
e tombamos a cada anoitecer
pequeninos de novo no regaço da mãe,
balbuciamos palavras da infância,
palpamos o caminho do regresso às origens.
Também o pesquisador solitário
que para o vôo ao sol se propusera
vacila, também ele, à meia-noite
voltado para o ponto de partida longe.
E o que dorme, quando um pesadelo o desperta,
confusa a alma, pressente no escuro
a hesitante verdade:
toda corrida, para o sol ou para a noite,
conduz à morte, leva a novo nascimento,
dores que a alma receia.
Mas seguem todos o mesmo caminho:
todos morrem e tornam a nascer,
porque a eterna mãe
devolve-os eternamente ao dia.

(em “Poesias Escolhidas", 1921)

Sonhando Contigo

Às vezes quando me deito
e meus olhos se fecham,
com a chuva batendo na cornija
os seus dedos molhados,
tu vens a mim,
esguia corça hesitante,
dos territórios do sonho.
Então andamos ou nadamos ou voamos
por entre bosques, rios, bandos de animais,
estrelas e nuvens com tintas de arco-íris:
tu e eu, a caminho da terra de origem,
rodeados de mil formas e imagens do mundo,
ora na neve, ora ao fogo do sol,
ora afastados, ora muito juntos
e de mãos dadas.

Pela manhã o sono se dissipa,
afunda dentro de mim,
está em mim e já não é mais meu:
começo o dia calado, descontente e irritadiço,
porém algures continuamos a andar,
tu e eu, rodeados de coleções de imagens,
a interrogar-nos entre os encantos da vida
que nos embroma sem saber mentir.

(em “Consolo da Noite”, 1929)

Ao Poeta Indiano Bhartrihari

Igual a ti, ancestre e irmão, também vou eu
entre o espírito e o instinto, em zigue-zague:
hoje sábio, doido amanhã, hoje de todo
entregue a Deus, amanhã ao ardor da carne.
Com ambos os açoites vou me flagelando
em sangue os costados: volúpia e penitência
- monge ou estróina, pensador ou bestial.
A culpa do existir em mim pede perdão.
Hei de pagar pecados em ambos caminhos,
em ambos fogos ardendo me aniquilar.

Os que me veneravam ontem como santo,
hoje em mim vêem um perdido libertino;
os que comigo chafurdavam na sarjeta
ontem, hoje me vêem jejuar e orar;
e todos cospem de lado e fogem de mim
- o amante falso, sem decoro e dignidade.
Em minha coroa de espinhos eu também
trago, entre as rosas rubras, a flor do desdém.

Hipócrita palmilho um mundo de aparências,
malquisto por vós e por mim, para as crianças
um monstro – e sei que qualquer ação, vossa ou minha,
perante Deus pesa menos que o pó ao vento.
E sei mais: nesta senda inglória de pecado
me sopra o bafo de Deus e eu devo agüentá-lo,
devo abusar – cada vez mais culpado, no êxtase
do prazer ou na proscrição dos meus malfeitos.
Qual o sentido desta agitação, não sei:
com as imundas e perversas mãos esfrego
o pó e o sangue do meu rosto – e bem ou mal
este caminho hei de levar até o final.

(em “Consolo da Noite”, 1929)

No Castelo de Bremgarten

Quem um dia plantou os velhos castanheiros,
quem um dia bebeu a água a esguichar da fonte,
quem um dia dançou no salão enfeitado
- foram-se todos, esquecidos e enterrados.

Hoje é a nossa vez: para nós brilha o dia
e cantam para nós alegres passarinhos,
sentamo-nos à mesa e sob a luz das velas
brindamos ao dia que é para nós eterno.

Quando nos formos e estivermos esquecidos,
nas árvores altas ainda se há de escutar
o gorjeio do melro e o cântico do vento,
e lá em baixo entre as pedras o rio a espumar.

No vestíbulo, na hora do grito noturno
do pavão, hão de estar aqui outras pessoas:
falarão, louvarão a maravilha da hora,
embandeirados barcos estarão passando,
e o eterno presente há de rir como agora.

(em “Novas Poesias”, 1937)

Andares

Como emurchece toda flor, e toda idade
juvenil cede à senil – cada andar da vida
floresce, qual a sabedoria e a virtude,
a seu tempo, e não há de durar para sempre.

A cada chamado da vida o coração
deve estar pronto para a despedida e para
novo começo, com ânimo e sem lamúrias,
aberto sempre para novos compromissos.
Dentro de cada começar mora um encanto
que nos dá forças e nos ajuda a viver.

Devemos ir contentes, de um lugar a outro,
sem apegar-nos a nenhum como a uma pátria:
não nos quer atados, o espírito do mundo
- quer que cresçamos, subindo andar por andar.
Mal a um tipo de vida nos acomodamos
e habituamos, cerca-nos o abatimento.

Só quem se dispõe a partir e a ir em frente
pode escapar à rotina paralisante.
É bem possível que a hora da morte ainda
de novos planos ponha-nos na direção:
para nós, não tem fim o chamado da vida...
Saúda, pois, e despede-te, coração!

(em “Andares”, 1961)

Rabisco na Areia

Que encantamento e beleza
sejam brisa e calafrio,
que o delicioso e bom
tenha escassa duração
- fogo de artifício, flor,
nuvem, bolha de sabão,
riso de criança, olhar
de mulher no espelho, e tantas
outras coisas fabulosas
que, mal se descobrem, somem –
disso, com pena, sabemos.
Ao que é permanente e fixo
não queremos tanto bem:
gemas de gélido fogo,
ouros de pesado brilho,
por não falar nas estrelas
que tão altas não parecem
transitórias como nós
e não calam fundo na alma.
Não: parece que o melhor,
mais digno de amor, se inclina
para o fim, beirando a morte,
e o que mais encanta – notas
de música, que ao nascerem
já fogem, se desvanecem –
são brisas, são águas, caças
feridas de leve mágoa,
que nem pelo tempo de uma
batida de coração
deixam-se reter, prender.
Som após som, mal se tocam,
já se esvaem, vão-se embora.
Nosso coração assim
leal e fraternalmente
se entrega ao fugaz, ao vivo,
não ao seguro e durável.
Cansa-nos o permanente
- rochas, mundo estelar, jóias –
a nós, transmutantes, almas
de ar e bolhas de sabão,
cingidos ao tempo, efêmeros
a quem o orvalho na rosa,
o idílio de um passarinho,
o fim de um painel de nuvens,
fulgor de neve, arco-íris,
borboleta que esvoaça,
eco de riso que só
de passagem nos alcança,
pode valer uma festa
ou razão de dor. Amamos
o que é semelhante a nós,
e entendemos os rabiscos
que o vento deixa na areia.

(em “Andares”, 1961)


Foto acima, ano de 1920, Hesse caminhando na região da
aldeia de Montagnola, no Ticino, período em que escrevia
Sidarta.

Abaixo, em 1927, ano da publicação de O Lobo da Estepe.

















Hermann Hesse (1877-1962)