quarta-feira, 13 de julho de 2011

Fernando Pessoa: Alguns Poemas



















FERNANDO PESSOA ELE MESMO

Quando Ela Passa

Quando eu me sento à janela
P’los vidros que a neve embaça
Vejo a doce imagem dela
Quando passa... passa... passa...

Lançou-me a mágoa seu véu:
Menos um ser neste mundo
E mais um anjo no céu.

Quando eu me sento à janela,
P’los vidros que a neve embaça
Julgo ver a imagem dela
Que já não passa... não passa...

(um dos primeiros poemas de Fernando Pessoa,
escrito aos 14 anos de idade: 5.5.1902)

__________

HÁ DOENÇAS piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pode ser, e é tudo.

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

(um dos últimos poemas de Fernando Pessoa,
escrito 11 dias antes de sua morte: 19.11.1935)

__________
 
AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
__________

ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
__________

TEUS OLHOS entristecem.
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham, esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.
__________

DOIS POEMAS ESOTÉRICOS

INICIAÇÃO

Dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
.................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda Caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
.................................

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, entre ciprestes.
.................................
Neófito, não há morte.

______

EROS E PSIQUE

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
__________

ALBERTO CAIEIRO

de "O Guardador de Rebanhos"

Poema II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
________

Poema III

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada
Por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarro...
______

Poema VII

Da minha aldeia vejo quanto da terra
se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande
como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte,
empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram
o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
______

Poema XVI

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
__________

RICARDO REIS

UNS, COM OS OLHOS postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
______

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas –
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
______

ANTES DE NÓS nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o paga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?
___________

ÁLVARO DE CAMPOS

CRUZOU POR MIM, veio ter comigo, numa Rua da Baixa
Aquele homem mal vestido,
pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante,
dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira
onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...)

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter pedir aos dias que passem, e nos deixem,
e isso é que é ser pedinte.

Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.


Fernando Pessoa (1888-1935)




terça-feira, 5 de julho de 2011

Dimitri Cervo: compositor brasileiro


A música ‘erudita’ brasileira, ainda que obscura no próprio país, sempre se destacou no cenário mundial: com reconhecimento imediato na Europa (Carlos Gomes) e depois internacionalmente (Villa-Lobos, Guarnieri, Santoro). Desde então, gerações de ótimos músicos se sucedem, alguns inspirando-se no rico manancial de nosso folclore e no cancioneiro popular; outros, optando por diferentes correntes estéticas, que souberam utilizar com criatividade. São vários os talentosos compositores de vanguarda da década de 60 até os dias atuais, citando alguns: Gilberto Mendes, Edino Krieger, Breno Blauth, Marlos Nobre, Almeida Prado, Jorge Antunes, Ronaldo Miranda e, recentemente, Harry Crowl, cuja obra tem se destacado bastante no exterior.

Entretanto, apesar do aumento significativo dos festivais de música contemporânea, não é possível negar o fato: depois que os movimentos concretistas e eletrônicos ditaram as regras à música 'erudita', tornando-a extremamente hermética, o grande público afastou-se das salas de concerto. Mas já surgem no cenário 'erudito' vários compositores com uma linguagem acessível àqueles que não se identificam com o cerebralismo das composições seriais e concretas. Hoje, a música de concerto, reclusa após décadas em círculos intelectuais, abre-se com um aceno visando uma maior comunicabilidade com os ouvintes que, apesar de não terem conhecimento técnico, possuem sensibilidade suficiente para apreciar uma obra elaborada. A tendência é a tonalidade, com ocasional atmosfera dodecafônica, mesclada com técnicas politonais, e temática nacionalista ou cosmopolita. Todas as experimentações e acertos anteriores a serviço da arte contemporânea, sem radicalismo e sem 'eruditismo'. Esse será o caminho da música do século XXI, penso eu.

Dimitri Cervo, nascido em 1968, em Santa Maria (RS) faz parte dessa nova geração de compositores que incentiva as pessoas a um retorno à música de concerto. São merecidos os elogios que o compositor gaúcho vem recebendo, nacional e internacionalmente. Suas obras em diversos gêneros (sinfônico, câmara, piano solo, coral) já foram apresentadas em todos os estados brasileiros e seguem caminho pelos festivais de várias cidades mundo afora. Nota-se nele um nacionalismo de voz própria: o bom aproveitamento do folclore indígena e a maneira como usa a dinâmica da percussão e os acordes minimalistas. Pensando nos apreciadores da boa música brasileira contemporânea, compartilho aqui, através de alguns vídeos, uma pequena parte de sua obra:

Toronubá, nesta ótima versão para cordas, percussão e piano, não perde o ritmo contagiante, é uma das melhores peças de Dimitri Cervo. O quadro sinfônico Brasil Amazônico nos encanta como a sugestão de uma clareira na grande selva, a melodia nos recorda um pouco a alegria folclórica de algumas peças de Guarnieri e Breno Blauth. E bela, muito bela é a poesia encantatória e intimista do Tema para Filme I, aqui interpretado com sensibilidade pelo próprio compositor.

Existem ainda diversas obras de valor: o elaborado Concerto para Violão; o Concerto para 2 Flautas e Cordas, interessante releitura do barroco vivaldiano; a canção coral Renova-te, com texto baseado em Cecília Meireles, etc. Esta última será apresentada no próximo 16 de julho no 42. Festival de Campos de Jordão.

Para maiores informações sobre biografia, recitais e concertos:

Dimitri Cervo: Official Website





Toronubá op. 16 (Série Brasil 2000 no. 4)
Orquestra Sinfônica de Sergipe - ORSSE
Guilherme Mannis, regente


Brasil Amazônico op. 13 (Série Brasil 2000 no. 1)
Orquestra Sinfônica de Porto Alegre - OSPA
Isaac Karabtchevsky, regente


Tema para Filme I op. 23
Dimitri Cervo, piano
StudioClio, Porto Alegre - Brazil - UFRGS TV



Reflexões Musicais 2


É curioso notar: quase todos os inovadores sentem uma espécie de remorso após o radical avanço de fronteiras, e tentam retornar ao ponto inicial de sua formação, ou ao passado, às vezes remoto. Cito apenas alguns casos: Monteverdi, após o Orfeu e as Vésperas, escreveu uma missa no estilo renascentista. Algumas décadas mais tarde, Schütz, o pai do barroco alemão, concluiu a obra de sua vida com uma série de paixões escritas à maneira antiga. O último quarteto de cordas de Beethoven é quase um retorno ao classicismo haydniano. Ocorrera algo semelhante com Wagner depois de Tristão e Isolda: o inusitado cromatismo cedeu à claridade quase barroca de Os Mestres Cantores. Stravinsky, assim que deu ao mundo o paganismo da Sagração da Primavera, retornou ao passado em busca da voz límpida de Pergolese, de Bach e dos mestres anteriores a Bach, e no auge de seu neoclassicismo criou uma missa nos rigorosos moldes clássicos. E assim também Penderecki, talvez o mais representativo e genial criador da segunda metade do tumultuado século XX: nos limites da experimentação sonora, após a quase dissolução do que entendemos como música, de repente o compositor interrompeu o curso retornando a um estilo próximo a Brahms e Mahler. Um retrocesso, disse a crítica.

No entanto, sabemos que em tudo há um movimento de pêndulo. Quando o futuro cobre-se de neblina, o retorno ao passado é o caminho para a reflexão. Todo artista sabe: a arte que não comunica perde-se em si mesma.

Assim como toda manifestação cultural e artística, a música também evolui no contexto historico-sociologico. Após a polirritmia e todos os ismos do século XX, de todas as correntes experimentais - reflexos da fragmentação moderna da psique – politonalismo, dodecafonismo, serialismo, concretismo, abstracionismo, minimalismo, etc. a tendência do final do milênio é o sábio equilíbrio: uma expressão que aproveite todos os ensinamentos antigos e modernos associados à clareza de forma e ao hermetismo moderado. Enfim, criatividade aliada a uma linguagem mais comunicativa.