quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Natal: Recordando Ictus



Durante determinado período do ano acontecem as festas natalinas. É muito bela essa revivificação da crença cristã. Quase sempre, porém, o seu propósito primordial fica esquecido.

Natal. O que representa essa comemoração que surgiu de um acontecimento que transformou a rota e o calendário de grande parte da Humanidade?

De escriba para escriba, de povo para povo, mil e mil vezes foram contadas a história, o mito e a lenda do Cristo. E mil vezes ainda será necessário repeti-las para que a essência não morra, é necessário que o nascimento inicie a cada ano para que a vida e o martírio sejam compreendidos e que a ressurreição se repita após os três dias de silêncio. Não é necessário ser católico ou cristão para compreender esta que é a mais maravilhosa lição de amor e de redenção de todos os tempos.

Recontemos a história para aqueles que a esqueceram:

Há pouco menos de 2000 anos uma voz clamava no deserto, exortando o povo: “Arrependei-vos, arrependei-vos.” Era João, o Batista, de alcunha Iocanã, que preparava o caminho para outro profeta maior, de asas mais vastas. Este tinha por nome Jesus, nascido em Belém, mas de família oriunda de Nazaré. Conforme consta nos apócrifos das cavernas do Mar Morto, era o sétimo filho do carpinteiro José, viúvo, e o primogênito de Maria, virgem essênica. Esse profeta maior, anunciado por Isaías e pelo próprio anjo Gabriel, havia sido gerado pelo Espírito Santo, e vinha com a impressionante missão de completar a Lei de Moisés, adaptando-a à mudança dos tempos. E mais ainda: sublimar todas as milenares doutrinas existentes antes dele. Sublimar como? Através do ensinamento e do ato do perdão, último estágio de aprendizado nesta Terra de vãs ilusões.

Conforme consta nos autos e testamentos dos Evangelistas, o Verbo se fez carne entre o povo humilde da Terra, no seio da família de um simples carpinteiro. E três magos do Oriente seguiram uma estrela cintilante, e vieram de muitas distâncias, sabendo que encontrariam um novo rei, diferente da opulência dos príncipes e dos soberanos. E os magos encontraram o menino e presentearam-no com ouro, mirra e incenso, e se inclinaram diante dele porque sabiam que naquele momento iniciava o Reinado do Peixe, o peixe que alimenta os que têm fome, o peixe que respira na água viva do Espírito. E esse seria o símbolo essencial dos primeiros cristãos.

Esse novo rei veio ensinar a humildade e a demonstrou em três momentos principais da existência: no nascimento, na vida e na morte – nascendo entre as palhas de uma rude manjedoura na gruta de Belém; depois, vivendo o medo em lágrimas no Getsemâni, e mesmo assim aceitando submisso a taça amarga do martírio, compreendendo a dificuldade e o peso de ser Homem com qualidades de Deus; e, enfim, morrendo - seguindo de cabeça baixa, humilde e triste, e ainda assim sereno, como um cordeirinho manso que é puro e que é levado para a matança do sacrifício final.

Historica e mitologicamente termina aqui a vida de um Homem que se deu em sacrifício para despertar outros homens para a humildade e o perdão, redimindo-os da cegueira e do egoísmo desvairado.

Mas, misticamente, acaso terminou a caminhada ao Calvário? Será preciso repetir a história, será preciso recriar o nascimento, será preciso reconstruir a cada ano no símbolo do Presépio o propósito do Nazareno? E nada mais? Até quando?

Desde 2000 anos essa voz clama aos desertos de nosso íntimo, exortando-nos ao amor ao próximo, à caridade, à solidariedade, à compaixão aos que sofrem. E após 2000 anos a humanidade continua se contorcendo em dor: sob o jugo das manipulações, na opressão dos fortes sobre os fracos, no acúmulo de posses materiais, na cruel competitividade econômica, na sexolatria, no entorpecimento dos sentidos e na eterna cegueira do coração.

Neste Natal, quando olharmos a pequenina imagem do Menino que sorri de braços abertos entre as palhas e entre os mansos animais, devemos vislumbrar nele o Homem, o adulto que em breve virá e que também ficará de braços abertos em um clamor silencioso, com a súplica humilde de quem sempre espera e aguarda uma mudança de comportamento de seus seguidores.

E no exato instante da repetição do nascimento, e com ele as bebidas e a comilança, os fogos coloridos no céu, e com eles os abraços eufóricos e os apertos de mão calorosos, é preciso que reflitamos: até quando faremos nascer o Menino para depois levá-lo ao sacrifício? Até quando vamos sacrificar esse Anjo do Pai Eterno para que a água viva continue a cobrir o pó da Terra?


Dezembro de 1999


Historiadores de renome e alguns estudiosos bíblicos dizem que os evangelhos foram forjados, que os pais de Jesus não viajaram, que não foram a Belém, que Jesus foi gerado e nasceu mesmo na aldeia de Nazaré, pois o único recenseamento da época, registrado oficialmente, ocorreu somente dez anos após o nascimento do menino galileu. A contagem era feita no próprio lugar onde habitavam os povos conquistados por Roma, mesmo porque jamais poderia existir uma contagem populacional em que as pessoas necessitassem de se locomover ao local de origem; em qualquer período da história seria economicamente inviável uma medida assim, sem qualquer lógica. Mas esse fato não importa tanto.

Muitos adeptos das tradições esotéricas e gnósticas afirmam que Jesus não morreu na cruz, que na verdade o seu corpo encontra-se enterrado em Srinagar, norte da Índia, onde padeceu os momentos finais devido aos ferimentos da crucificação. Dizem que todos os acontecimentos foram partes de um projeto grandioso, idealizado muito antes, com o objetivo de reconstruir o mito do Messias; que Maria, seu irmão José de Arimatéia e outros sábios da comunidade essênica ajudaram nesse plano para que se cumprisse a profecia de Isaías, elegendo Jesus como o salvador esperado. Esse, penso eu, também foi o argumento na estrada de Damasco que convenceu Paulo de Tarso a se tornar cristão e dar continuidade ao elevado projeto, não apenas o de subjugar Roma, mas de abrir caminhos mais iluminados para a Humanidade. Conforme essa leitura, nunca houve literalmente a ressurreição de corpo e espírito, um dos dogmas máximos do cristianismo, embora o símbolo seja verdadeiro, pois certo é que o Espírito como água que sacia e a idéia do corpo ressurrecto - pão que alimenta - continuaram vivos na doutrina.

Detalhes minuciosos do que poderia ter sido a história por trás da história não deveriam nos importar tanto. O que importa de verdade é o Verbo, a Palavra, a lição que o Mestre nos ensinou: os pensamentos e os atos sublimes de amor e perdão que Cristo trouxe para completar a doutrina de outros avatares do passado. Além das palavras santas o que importa é o exemplo que Jesus nos mostrou, indo para o patíbulo com humildade e muita coragem. E no silêncio da jornada nos dizia, conforme compreendo:

Não temam a morte. Ela não existe da maneira como vocês pensam. Há um Reino Espiritual muito mais vasto do que esses limites que os olhos alcançam. Todos somos peregrinos em direção à consciência da Luz, porque todos, desde sempre e todo o sempre, pertencemos fisicamente ao Átomo original que tudo abarca, e espiritualmente já somos Um com o Pai. E a única forma de homenagear o Pai é amando os irmãos. Mas façam o bem e sejam justos simplesmente pela alegria que o bem faz aos outros e a nós mesmos, não esperando recompensas, pois elas virão como acréscimo. O Amor por si só há de nos ensinar e iluminar. Não tenham medo!


Dezembro, 2009

sábado, 19 de dezembro de 2009

Saint-Saëns: Oratório de Natal


 
Os músicos alemães dos Secs. 17 e 18 criaram os mais grandiosos oratórios sobre o tema do Natal: Weihnachtshistorie (História da Natividade, 1660) de Heinrich Schütz, um dos primeiros que aborda o tema nesse gênero lírico-dramático, já é obra-prima; depois, Bach, com as seis magistrais cantatas que compõem o Oratório de Natal (1934); e, alguns anos depois, o mais belo oratório de todos, O Messias (1742) de Handel; após mais de dois séculos e meio continua sublime e irretocável.

Os franceses, embora não tenham deixado oratórios tão poderosos como os citados, também contribuíram com obras de valor. Basta lembrar de L’Enfance du Christ (A Infância de Cristo, 1854) de Berlioz. Ora dramático (o Sonho de Herodes), ora lírico (A Fuga para o Egito) é todo estruturado com coros de câmara e reduzido acompanhamento instrumental, que surpreende em um compositor que dava tanta ênfase à orquestração extravagante.

E não podemos esquecer do Oratório de Noël, que Saint-Saëns criou na espontaneidade de sua juventude, com apenas 23 anos. Obra modesta, porém rica em lirismo contemplativo, continua muito executada nas associações corais do mundo todo, merecidamente. Encanta, do início ao fim. Prestem atenção no trio Tecum principium para soprano, tenor e baixo, acompanhados pela harpa e órgão. Que maravilha!

Camille Saint-Saëns (1835-1921)


Oratorio de Noël, Op. 12 (1858) [39:38]

1-Prelude (Dans le style de Séb. Bach) (3:16)
2-Recit et Choeur: Et Pastores erant - Gloria (coro) (5:47)
3-Air: Expectants expectavi Dominum (soprano) (4:08)
4-Air et Choeur: Domine, ego credidi (tenor e coro) (4:01)
5-Duo: Benedictus qui venit (soprano e baixo) (4:03)
6-Choeur: Quare fremuerunt gentes (coro) (3:59)
7-Trio: Tecum principium (soprano, tenor e baixo) (4:23)
8-Quatour: Alleluja (soprano, soprano, contralto e baixo) (2:14)
9-Quintette et Choeur: Consurge, Filia Sion
(soprano, soprano, contralto, tenor, baixo e coro) (5:29)
10-Choeur: Tollite hostias (coro) (2:18)

Coro Bach e Orquestra Bach de Mainz
Verena Schweizer (soprano)
Edith Wiens (soprano)
Helena Jungwirth (contralto)
Friedreich Melzer (tenor)
Kurt Widmer (baixo)
Hans-Joachim Bartsch (orgão)
Barbara Biermann (harpa)
Diethard Hellmann (condutor)

Download MP3 - Baixar SaintSaens.OratorioNoel.Hellmann.zip

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Pablo Neruda: Os Construtores das Estátuas


(...)

Tu me perguntarás se a estátua em que tantas
unhas e mãos, braços escuros fui gastando,
te reserva uma sílaba de cratera, um aroma
antigo, preservado por um signo de lava?

Não é assim, as estátuas são o que fomos, somos
nós, no nosso rosto que olhava as ondas,
nossa matéria às vezes interrompida, às vezes
continuada na pedra semelhante a nós.

(...)

Arranharás a terra até que nasça
a firmeza, até que caia a sombra na estrutura
como sobre uma abelha colossal que devora
o seu próprio mel perdido no tempo infinito.

Tuas mãos tocarão a pedra até lavrá-la
dando-lhe a energia solitária que possa
subsistir, sem se gastarem os nomes
que não existem,
e assim de uma vida a uma morte, amarrados
no tempo como uma única mão que ondula,
elevamos a torre calcinada que dorme.

(...)

Olhai-as hoje, tocai esta matéria, estes lábios
têm o mesmo idioma silencioso que dorme
em nossa morte, e esta cicatriz arenosa,
que o mar e o tempo como lobo lamberam,
eram parte de um rosto que não foi derrubado,
ponto de um ser, cacho que derrotou cinzas.

Assim nasceram, foram vidas que lavraram
sua própria cela dura, seu panal na pedra.
E este olhar tem mais areia que o tempo.
Mais silêncio que toda a morte em sua colmeia.

Foram o mel de um grave desígnio que habitava
a luz deslumbrante que hoje resvala na pedra.


(trechos de Os Construtores das Estátuas,
em Canto Geral, 1950)


Pablo Neruda (1904-1973)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

NATAL com Vaughan Williams, Britten, Rodrigo, Villa-Lobos, Poulenc e Honegger


 
Grandes compositores eruditos do século XX dedicaram-se ao tema do Natal, principalmente na Inglaterra, onde a representação da Natividade no palco é tradição, através de masques, pageants e carols, expressões típicas dos britânicos.

Ralph Vaughan Williams (1872-1958), a essência da música inglesa de todo o século XX, amava o Natal e criou várias obras natalinas, entre as quais a longa cantata Hodie, além de On Christmas Night, masque inspirada na obra de Dickens. Não foi um acaso que também sua última obra tenha sido uma peça da Natividade The First Nowell. Mas de todas a que permanece mais bela e espontânea é a Fantasia on Christmas Carols, a primeira que compôs sobre o tema. Utiliza quatro carols que o próprio compositor redescobriu nas aldeias de Somerset, Herefordshire e Sussex e preservou como folclore. O resultado é um hino contagiante, uma peça belíssima, entoada por um barítono, simbolizando o pastor, e um coro. Nesta versão são acompanhados pelas cordas e órgão.

Benjamin Britten (1913-1976), outro britânico que também investigou o folclore, e paralelamente se tornou no país o maior compositor de óperas desde Purcell, escreveu na juventude diversas peças corais natalinas: Christ’Nativity, A Boy Was Born, e a mais admirável de todas A Ceremony of Carols sobre poemas de Gerard Bullett, escritos em inglês antigo. Cantado por um coro de meninos e solistas, acompanhados por harpa, o conjunto de carols transmite paz celestial de uma beleza que enternece.

O espanhol Joaquín Rodrigo (1900-1990) pesquisou muito o folclore da Espanha antiga, com especial enfoque no século XVIII, (re)criando-o com criatividade em suas obras. Daí surgiram deliciosas peças como estas duas canções com coro que pertencem ao 'Retablo de Navidad': Cantan por Belén pastores e A la Clavelina, com sons de flauta e ritmos que só Rodrigo consegue.

O brasileiro Villa-Lobos (1887-1959) deixou-nos um imenso catálogo com obras em quase todos os gêneros eruditos, e centenas de canções folclóricas, coletadas e harmonizadas, mas poucas sobre o tema natalino. Apesar de ser uma obra de circunstância, não poderíamos deixar de lado este belo e raramente gravado Canto do Natal, música de Villa-Lobos sobre poema de Manuel Bandeira.

Na França, país que também deixou belíssimas obras sobre o Natal, encontramos o grande compositor Francis Poulenc (1899-1963), que foi 'enfant terrible' na juventude e, após a perda dolorosa de um amigo, transformou-se totalmente a ponto de se converter ao catolicismo e compor algumas das mais sinceras obras sacras do século, entre as quais estes quatro motetos a capella de uma suavidade angelical, perfeitas gemas de otimismo cristão: Quatre Motets pour les Temps de Noël (com textos em latim): 1-O magnum mysterium, 2-Quem vidistis pastores, 3-Videntes stellam e 4-Hodie Christus natus est.

E, por fim, uma Cantata de Noël, das poucas no século XX com real elaboração erudita. Última obra do suiço Arthur Honegger (1892-1955), hábil no gênero oratório e em sinfonias complexas, a peça não foge do estilo denso do compositor. O libretto de César von Arx utiliza textos latinos como De Profundis e Laudate Dominum, canções folclóricas francesas e outras conhecidas no mundo todo como Estrela de Belém e Noite Feliz. A música inicia sombriamente: o coro feminino e o coro masculino crescendo alternados sugerem a tristeza do mundo imerso nas trevas. Após um longo e uníssono Amén, um coro de crianças anuncia a luminosidade da estrela que surge trazendo as boas-novas: o nascimento do menino-Rei. O final é um hino de exaltação à alegria. Trata-se de um desfecho digno, uma despedida comovente de Honegger. Talvez não seja a mais bela, mas sem dúvida é a obra mais elaborada e densa nesta coletânea.

Eis um conjunto de obras de compositores modernos e acessíveis, que criaram em linguagem inovadora, mas não adotaram o exagerado hermetismo que quase sempre impede a comunicação com o grande público. A compilação, da maneira como está aqui, não se encontra em lojas de disco. Agrupei as peças motivado pelo gosto particular, que agora compartilho pensando no evento cristão mais importante: o Natal, um tempo de alegria e agradecimento pelo Ser divino que habitou espiritual e fisicamente entre nós.

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Natal.VWilliamsBrittenVillaLobosetc.zip

Ralph Vaughan William
Fantasia on Christmas Carols (1912)
John Barrow (baritone)
Choir Guildford Cathedral – String Orchestra

Gavil Williams (organ)

Barry Rose (conductor)

Benjamin Britten
A Ceremony of Carols (1942)
Cambridge King’s College Choir

James Clark (tenor)Julian Godlee (treble)
Osian Ellis (harp)
Sir David Willcocks (conductor)


Joaquín Rodrigo
Retablo de Navidad nos. 1 e 8 (1952)
Raquel Lojendio, soprano [1]
Coro de la Comunidad de Madrid
Orquestra de la Comunidade de MadridJosé Ramún Encinar (direction)

Heitor Villa-Lobos
Canto de Natal (1945)
Coro da Rádio Ministério de Educação e Cultura
Isaac Karabitschevsky (regência)

Francis Poulenc
Quatre Motets pour le Tempos de Noël (1952)
Robert Shaw Festival Singers
Robert Shaw (director)


Arthur Honegger
Cantate de Noël (1953)
Camille Maurane, baryton
Choeur National de l’ORTF
Orchestre National de l’ORTF
Henriette Puig-Roget, orgue
Jean Martinon (direction)