domingo, 26 de maio de 2013

Pablo Neruda: O Grande Oceano - Enigmas (Peixe Encerrado no Vento)



Poucos poetas criaram metáforas tão mágicas como o chileno Pablo Neruda. Era mestre em (re)inventar o sentido das palavras. Nessa viagem nenhum dicionário pode ser útil, porque só mesmo a intuição pode decifrá-las. Por isso, quanto mais rica a mundividência, mais vasta a colheita.

Alguns críticos azedos enxergam mal a lírica de Neruda e acusam-na de sentimentalismo piegas; outros torcem o nariz dizendo que já é gasto e ineficiente o socialismo de seus versos. Ora, essas opiniões vêm de alguns cabeças de ovo, intelectuais sem sensibilidade, que não conseguem ver além da semântica ou da estrutura do texto. Para compreender a poesia é preciso muito mais do que um cérebro afiado. Concordo com Hermann Hesse que disse certa vez, ao ler uma crítica incompreensiva sobre Proust: “Quero mais é que cresçam musgos sob a língua desses críticos.”

O poema abaixo foi muito bem utilizado no filme “Ponto de Mutação”, da obra de Fritjof Capra. Não li o livro, mas vi o filme. É interessantíssmo! E o recomendo a todos: Um político, uma cientista e um poeta discutem problemas físicos e metafísicos, tentando encontrar um caminho para a salvação da Humanidade. No filme, no momento em que o político totalmente perdido não encontra um caminho para a preservação do planeta, no instante em que a cientista tenta encontrar uma solução em seus teoremas, e a física quântica timidamente tenta ajustar o ponteiro de sua bússola, então o escritor recita Neruda. A poesia surge talvez não para esclarecer, mas para nos consolar e sugerir humildade diante das dimensões labirínticas do Universo.

Grandes poetas sempre existiram e continuarão existindo, alguns mais geniais, outros menos, mas todos passam horas e horas lapidando o texto com o intuito de nos presentear com beleza estética e espiritualidade, seja ela doce para o nosso enlevo, seja amarga para nos alertar e nos incitar ao crescimento. Podemos comprar os seus livros, mas a riqueza que nos oferecem... jamais podemos pagá-la o suficiente.

Viva Neruda !

Enigmas


Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre
as suas patas de ouro e vos respondo: O mar o sabe.
Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente?
Que espera? Eu vos digo, espera como vós, o tempo.
Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.

Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.
Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré astral?
E sobre a construção  cristalina do pólipo tereis
embaralhado, sem dúvida
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactita que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?

Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.

Eu não sou mais do que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, medidas
de um tímido hemisfério de laranja.

Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.


(de Canto Geral, parte XIV: O Grande Oceano)

Pablo Neruda (1904-1973)

[tradução de Paulo Mendes Campos, 
revista por Maria José de Queiroz]