sábado, 29 de agosto de 2009

Esquecimento


não se morre só quando se fecham os olhos
ou cessam de respirar os pulmões

se existem muitas formas de morrer
também morre o coração - aos poucos

na omissão do aceno tão esperado
no cruel silêncio de alguém que amamos

morre-se um pouco a cada dia
pela ausência da palavra que nunca chega

morre-se como galhos que se esgarçam
tentando abraçar os contornos da tarde

morremos - parcelas inexatas – fielmente
no acúmulo do carinho mendigado

um dia emudece a essência da alma
extingue-se a esperança, antes tão farta

e do amor sobra apenas uma ponte retorcida
em cujas tábuas soltas o abismo vence


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Fernando Pessoa: Prece


Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

[...]

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.


(Em Obras em Prosa: O Eu Profundo, Ed. Nova Aguilar)

Fernando Pessoa (1888-1935)

_________________________________

Este curto texto do grande poeta português Fernando Pessoa encontra-se espalhado pela Net. Repeti-lo aqui não seria necessário, mas o faço por admiração e tributo. A Prece é muito apreciada por leigos e especialistas, com razão, pois o conteúdo sincero e vasto que há nela vai muito além de credos pessoais ou de confrarias. Penso mesmo que deveria ser reconhecida como um elo entre as religiões para promover o verdadeiro Ecumenismo.

Teóricos da literatura, psicólogos, parapsicólogos, místicos e esotéricos, todos tentam explicar o fenômeno dos heteronômios em Fernando Pessoa. No entanto, esquecem que o próprio poeta escreveu longamente sobre o assunto, atribuindo vida própria aos inúmeros autores que co-escreveram a sua obra; segundo ele, não eram personagens mas sim entidades, tanto que discordava veemente de alguns, muito mais de Alberto Caieiro, como podemos notar nesse trecho de carta:

“(...) escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do ‘Guardador de Rebanhos’, com a sua blasfêmia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente real, com que vivo social e objetivamente, nem uso da blasfêmia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caieiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira, quer não, quer eu pense como ele ou não. (...)”Não é ilógico crer que os diversos autores que participaram da obra de Fernando Pessoa eram "pessoas" distintas. Apesar da discordância dos céticos, este é um caso nítido de mediunidade, da qual o poeta tinha consciência e, apoiado em sua erudição, explicava.

Pessoa era um esotérico, um iniciado que conhecia com profundidade as chaves secretas de várias fraternidades. Tinha na previsão da Astrologia, entre outras, uma espécie de condutora para os seus passos, associada à lucidez da lógica filosófica. Basta dizer que despertou o interesse de Aleister Crowley, o maior bruxo do século XX. Vários encontros ocorreram entre os dois.

Mas não tenho dúvida, diante da comparação dos estilos, que a Prece acima transcrita pertença a Fernando Pessoa, ele mesmo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Cícero Acaiaba: Fronteira do Reino


Refração

Há uma fronteira que não se deve transpor
fica entre a névoa e o reinado de aquário
sua porta é espelho convexo
quem olha pra trás vira estátua de pedra
quem olha pra frente
seu lúdico reflexo.
Os que ousaram espreitar as mãos
entre as frinchas fluidas
e tatearam o palpitante ossário
decifram o silêncio
dos suicidas.
Há uma fronteira
que divide o homem em partes iguais:
depois do primeiro passo
não poderá retroceder jamais.

Jardim Inefável

No muro, um simples traço. É só tocá-lo
e o jardim submerge por encanto.
Noite densa de luzes afogadas,
profundamente abismo em que se esconde

no próprio enigma. Do lado esquerdo,
um rio de asas trêmulas, fugindo
imóvel. À direita, estátuas olham

para o silêncio, onde germina o tempo.
E nada existe além do grande medo,
nem sequer a lembrança de uma estrela
boiando as sombras do jardim perdido.

O muro cada vez fica mais longe,
até que resta apenas o sussurro
das nuvens de outro céu amanhecendo.

Música Invisível

No fundo da alameda a água que lembra:
reflexos tão velhos esgarçados
e um pássaro no vôo interrompido.

A tarde sopra névoas de silêncio,
e tudo fica imóvel no jardim.
Apenas uma estátua quase morta
sorri, pra naufragar depois no sonho.

A sombra escorre calma na alameda,
subitamente o vento passa, o instante
das pétalas e folhas desfiarem
a surdina do eterno encantamento.

Mas os grilos, por mágica da noite,
começam a quebrar em sons de prata
o invisível espelho dessa música.

O Mito

Andei por tanto tempo à procura do mito,
entre escuros caminhos, e veredas frias.
Da frágil relva ao sólido granito
varando noites, viajando dias,

busquei a essência misteriosa do infinito.
Porém, por todo o reino, as órbitas vazias
das clareiras calavam como um grito,
cujo eco perdeu-se em longes serranias.

Exausto, dominando a custo meu cansaço,
estrelas a orvalharem todo o espaço,
achei o sono em doce alfombra.

E em sonho eu vi então, nitidamente,
o mito me fitando frente a frente
com seu rosto de sombra.

Espelho

O espelho sorve aos poucos outra imagem,
e deixa a sombra cega no seu ermo
de trastes cismativos, de roupagem
enrugada e poeira fria. O termo

da planície é o enigma da miragem:
olhos de estátua sob um sono enfermo,
e mãos caladas lendo a tatuagem
na areia da alma onde há fluir de aragem.

Espelho a dentro mil lembranças agem,
vozes esgueiram calmas, de repente
cabelos naufragando à luz inquieta.

O trêmulo reflexo da celagem
fere por fim interminavelmente
o coração numa invisível seta.

A Semente da Noite

Da semente da noite nasce o sono:
flor de lótus perfuma com silêncio
os olhos que morreram sem amor
e se orvalharam de névoa e escuridão.

Tristes esperam, juntos e sozinhos,
a luz da madrugada há um milênio,
e ouvem girar o mundo em derredor,
imóveis, esquecidos sob o chão.

Até o último gesto, apelo inútil,
talvez saudoso estigma de adeus,
secou nos ossos da vazia mão.

O tempo inexorável já transforma,
- e para sempre, asperamente fria –
em pedra o que antes era coração.

Solidão/Limite

Aqui é o teu limite: não prossigas.
Baste à tua volúpia o sonho raro
de tecer a distância. Ou a infância
aprisionar em castelos de areia.

A fronteira se perde em vago oceano,
e os veleiros de um mundo singram veias
de ácido e lodo. Fica no teu reino,
aqui é teu momento de repouso.

Não mais o medo desta solidão,
nem silvos de vinganças rastejantes:
talvez a morte de nascer apenas.

Ultrapassar a linha deste mapa
é o mesmo que gritar na pedra sem
que te responda o eco de ninguém.


(poemas e sonetos selecionados de
"Fronteira do Reino", 1988, Ed. João Scortecci)


Cícero Acaiaba (1925-2009)