sexta-feira, 29 de maio de 2009

No Palácio de Espelhos



é madrugada
a bailarina gira inebriada
no palácio de espelhos

em música
os fantasmas erguem-se
esguios

na imaginação:
todos: altos belos brancos
quase vivos

no centro do salão
um poeta opaco rodopia
trazendo o sol entre os dedos

a bailarina cansada
nada vê
fecha os olhos

e dorme




terça-feira, 12 de maio de 2009

Bach: Concertos de Brandenburgo, com The English Concert, dirigido por Trevor Pinnock




A Obra

Em 1721, quando BACH apresentou e dedicou esses Seis Concertos a Christian Ludwig, duque de Brandenburgo, não imaginava que logo em seguida eles seriam esquecidos e, após a morte do margrave, vendidos por uma pequena quantia, correspondente hoje a alguns ínfimos centavos. Imaginava muito menos que em 1850 esses concertos seriam exumados e publicados, e no século XX seriam considerados como uma das maiores obras musicais da história da humanidade. Em termos de música, não há o que dizer, é a perfeição absoluta.

Nas primeiras décadas do século XX, essas obras eram apresentadas por uma orquestra enorme, conforme o gosto estético do exagerado romantismo do entre séculos, o que não dava idéia da verdadeira concepção estética de Bach e do próprio estilo barroco. Foi assim que muitas pessoas daquela época conheceram esses Concertos de Brandenburgo. Eram de um Bach pesadão e arrastado.

A partir dos anos 20, quando o estilo neoclássico entrou em moda, muitos regentes jovens quiseram estudar as partituras originais das peças barrocas e clássicas, determinando o início da chamada ‘arqueologia musical’. Com rigor devolveram a verdadeira estética a essas obras, buscando no andamento correto e em cada instrumento a sonoridade de como era na época em que viviam os compositores. O aperfeiçoamento dessa leitura ampliava-se a cada tentativa de aproximação de seus respectivos estilos e escolas. Então foi possível ouvir Bach como realmente deveria ser: ágil, leve e ao mesmo tempo vertiginosamente complexo.

Há uma espantosa variedade na estrutura desses Seis Concertos. Até mesmo os ouvintes habituados com a Obra total de Bach surpreendem-se com a riqueza que há neles. Alguns pertencem ao legítimo concerto grosso, como os de Nos. 2, 4 e 5 em que o concertino (um ou mais instrumentos solistas) dialogam com o ripieno (as cordas). Os outros, Nos. 1, 3 e 6, são concertos sem solistas. Neste caso, são as partes que se alternam nos temas em diálogo, complementando-se como dois coros. Nos Concertos Nos. 3 e 6, por exemplo, os violinos “conversam” com os violas, ou como ocorre no Concerto No. 1, um grupo de cordas alterna-se com o de sopros. De fato, como Bach prescrevera, apenas esse primeiro Concerto deveria utilizar uma orquestra de médio porte; os outros cinco foram idealizados como concertos de câmara. E realmente ficam muito melhores nessa distribuição reduzida de instrumentos do que numa orquestra inteira que obscurece a agilidade e a clareza dos temas.

Bach era fascinado por números. Nos Concertos de Brandenburgo a concepção arquitetônica das formas demonstra isso. O No. 2 tem o formato triangular: um solista, o trumpete, situa-se no ápice; logo abaixo é apoiado por outros três (oboé, flauta-doce e violino), e como base aos quatro estão as cordas. Não se sabe o motivo de ser atribuído a ele o No. 2, pois deveria ser 3. A sua estrutura assemelha-se em tudo a uma pirâmide. Ao Concerto No. 3 Bach reservou a idéia do espelho múltiplo. É executado por três grupos de cordas, cada um formado por uma tríade: 3 violinos, 3 violas e 3 violoncelos. Sem contar o baixo contínuo que as apoia, as partes perfazem o número 9. Nos Concertos Nos. 4 e 5 os 3 instrumentos solistas se alternam com as cordas (2 e 2, 1 e 3 , 2 e 3, 3 e 2). E o Concerto No. 6 repete a estrutura do No. 3, sendo 3 partes de 2 instrumentos, formando o número 6. Em todos os concertos há esse fascinante jogo numerológico que todos podem observar. Cada um tem a oportunidade e o direito de tirar suas próprias conclusões matemáticas ou mesmo esotéricas. Pitágoras ia delirar com uma música assim.

Os estilos também são dos mais diversos: há o ritmo de concertos de mestres italianos como Corelli, Torelli, Albinoni e principalmente Vivaldi, mestre que Bach estudou muito; há os elementos franceses como as danças estilizadas de alguns movimentos ao gosto de Couperin. Já a utilização de instrumentos de sopro é nitidamente de preferência alemã. No sexto concerto foi utilizada a viola da gamba que na época já era antiquada, mas Bach quis prestar homenagem ao século XVII, como uma despedida ao passado, trazendo de volta os dias de glória desse instrumento com sua sonoridade única. Hoje esses instrumentos precursores das cordas atuais da orquestra também estão de volta, mais vivos do que nunca, o que podemos confirmar nas inúmeras gravações do regente espanhol Jordi Savall, que é um dos maiores violistas da gamba atuais.

Nesses Concertos de Brandenburgo, Bach, sem perder a individualidade, mesclou tudo que aprendera com os mestres anteriores e criou os mais versáteis concertos barrocos de que se tem notícia.

Quanto à atmosfera, esta dispensa comentários, é a música mais feliz, de maior beleza e luminosidade já escrita.

Os Intérpretes

Já ouvi excelentes versões e leituras destes concertos, mas a presente gravação do ENGLISH CONCERT, dirigido por TREVOR PINNOCK, supera todas. Aqui está a resposta para aqueles que reclamam de que todas flautas barrocas soam como canos de pia, ou de que todo violino do período possui sonoridade estridente. Nesta gravação do English Concert não há nada disso.

Michael Laird brilha, executando o trumpete natural no Concerto No. 2, um solo absurdamente difícil. O excelente violinista Simon Standage, tocando em instrumento do século XVIII, dá conta perfeitamente das vertigens virtuosísticas do Concerto No. 4. A flautista Lisa Beznosiuk supera-se a si mesma nesta gravação do Concerto No.5. E o que podemos falar do próprio Trevor Pinnock na direção e no solo dificílimo de cravo do mesmo Concerto No. 5? Está magnífico, assim como todo o The English Concert.

Arte Compartilhada

A vontade que dá é escrever páginas e páginas sobre esses Seis Concertos. Mas paro por aqui. Não tenho a pretensão de fatiar e detalhar esses diamantes de arte. Seria necessário um livro inteiro para comentá-los. E ainda assim seria pouco. Ou seja, a audição dessa música grandiosa por si só vale mais do que milhares de palavras.

Para quem se interessar, aqui está a recomendadíssima gravação: 2 CDs, cada um com 3 concertos. Não se esqueçam, porém, que uma vez apreciada a obra em mp3, recomendo que adquiram-na em alguma loja, pois o som do CD original é superior.


Download MP3 - Baixar:
CD1: Concertos de Brandenburgo Nrs 1, 2 e 3
Bach.BrandenburgCtos.123.Pinnock.zip
CD2: Concertos de Brandenburgo Nrs 4, 5 e 6




sábado, 9 de maio de 2009

Sobre o Benefício: De uma frase de Aristóteles



“Não há nada no mundo que envelheça tão depressa como o benefício”.

Quando, na quinta centúria antes da Era Cristã, Aristóteles, o filósofo de Atenas, proferiu essa sentença, certamente estava a abarcar a Humanidade como um todo. Apoiava-se em seu vasto saber, a partir de longos anos observando as ulcerações sociais, comuns em todas as épocas, constatando que o homem, em sua totalidade, retribuía com a ingratidão o bem recebido. Talvez tivesse razão, se nos fosse dado analisar a sociedade humana somente através da ótica das imperfeições e fraquezas, o que não pode ser verdade, porque sempre há um lado que contém as virtudes, ainda que em diminutas proporções.

No mesmo período da história, quando na Civilização Helênica reinou a mente analítica de Aristóteles, também viveu, na Ásia, um príncipe hindu, que abandonou família e riquezas para buscar o sentido da existência. Siddharta Gautama, o Buddha, Avatar do posterior Budismo, repetiu, no decorrer de sua vida muitas vezes a seguinte frase:

“Do charco nasce a flor-de-lótus”.

Sim, no lamaçal das intempéries humanas, na caótica desigualdade social, desde imemoráveis eras, viveram homens frágeis, indivíduos de personalidade esfacelada pelas injustiças, que nunca puderam recorrer ao amparo da riqueza, que não tiveram as oportunidades de se elevarem espiritualmente. A eles sempre restou a ingratidão por força de conviver com a desconfiança adquirida na velada escravatura da exploração do irmão pelo irmão.

Entretanto, em todos os períodos da história humana, em que a humanidade vive às vésperas do caos, surgem indivíduos que, emergindo mesmo da confusa época em que vivem, transcendem-na, demonstrando uma presença marcante em iluminação, imbatíveis na defesa da virtude e da consciência moral, atuando e contribuindo para a evolução espiritual dos irmãos em trevas. Não são muitos, é bem verdade, aqueles que compreendem a iluminação e tentam seguir um novo caminho. Mesmo assim, poucos que são, já conseguem alterar o ânimo do mundo.

A Aristóteles só podemos dar uma metade da razão. Não creio que o benefício seja totalmente esquecido, porque nem tudo pode ser perdido no coração dos homens.

Do charco sempre há de nascer uma flor-de-lótus, essa planta sagrada da renovação humana.


(em "Sobre a Cinza e o Fogo: Pequenas Reflexões")


quinta-feira, 7 de maio de 2009

Encontro



observe as tangerinas
- não adquirem doçura
no dia em que nascem

de primavera precisam
e de um verão também
- chuvas diagonais, luz!

o tempo só estende-se
retroage e avança - só
para amadurecer o coração

certo é: grandes encontros
pedem grandes preparações
para que feliz seja o dia


agosto de 2004



 Tangerine: copyright by Sergey Lavrentiev


terça-feira, 5 de maio de 2009

Bach, Handel e Scarlatti





O breve ensaio que se faz presente foi encomenda do amigo Edgard Brito – compositor, pianista e professor de história da música – com o objetivo de introduzir seus alunos do conservatório no fascinante mundo da música barroca. Que os mais experimentados no assunto me perdoem os momentos em que a paixão pela arte carrega-se de cores, sacrificando o estilo sóbrio da imparcialidade histórica.

***
O ano de 1685 é considerado uma dádiva para os amantes da música, principalmente da música barroca. Três gênios nasceram sob o auspicioso sol desse ano: Bach, Handel e Scarlatti (o Domenico).

Não é novidade alguma: Bach é um marco na história da Música. Como compositor foi pouco conhecido em vida. Nos anais da época, falava-se dele como um organista, o maior de todos. Hoje, através das partituras, sabemos que é a maior obra para órgão de que se tem notícia, e mais: a Obra de Bach, em sua totalidade, é a culminância do que a música erudita chegara até então. Até a morte, em 1750, Bach é a confluência de todos os estilos e técnicas dos períodos anteriores. É, de fato, a súmula da Música até aquela data!!! E, como importância artística, muitos dizem: é a maior de todos os tempos, perdendo em importância histórica apenas para a obra de Beethoven, já que esta delimitou todo um comportamento musical da humanidade; ultrapassando o campo da arte atingiu aspectos sociológicos e filosóficos, focalizando a individualidade do criador como o cerne da obra criada.

E também não é exagero o epíteto: Bach e Haendel, os dois maiores gênios alemães do século XVIII! Além destes, poderíamos citar Telemann, músico competentíssimo, mas na maioria das vezes apenas excelente ‘artesão’. Há Glück, grande na ópera. Há também Beethoven, mas, apesar de alemão, ainda não havia escrito as suas maiores obras-primas. E Haydn e Mozart eram austríacos.

Entretanto, apesar de ter nascido na Alemanha, Haendel viveu a maior parte da vida na Inglaterra. De corpo e alma, tornou-se cidadão inglês. Embora de conteúdo universal, a parte mais importante de sua obra coral, os oratórios, foi escrita no ‘espírito’ britânico. Acho justo designá-lo na grafia inglesa: Handel, o que farei a partir deste parágrafo.

Não é possível, em questões de profundidade, fazer comparações entre Bach e Handel. O primeiro, em tudo que compôs, é muito mais profundo do que o segundo. No entanto, Handel é mais brilhante, no sentido de nos arrebatar de imediato. Bach, de tão profundo que é, às vezes chega a nos deixar exaustos. Em Bach sentimos cargas e cargas de profunda emotividade religiosa e complexidade artística que nos exaurem. Em Handel há uma liberação natural do êxtase, do luminoso, do júbilo, que não nos exige concentração excessiva, excetuando, é claro, a maioria de seus oratórios, que muito nos pedem de atenção, devido ao dramatismo condensado.

Se Bach é a súmula da Música escrita até os meados do século XVIII, então, podemos dizer que Handel é, especificamente, a súmula do período Barroco. Quem quiser estudar o Barroco em suas linhas gerais, deve estudar a Obra de Handel, pois nela concentram-se todos os estilos em voga nos séculos XVII e XVIII, peculiares a cada país - o italiano, o francês, o alemão e o inglês. A Alemanha está nas obras sacras iniciais; a França dos Couperin está resumida nas suítes para cravo bem como nas suítes orquestrais; a Itália dos Scarlatti, nas óperas; nos concertos grossos concentram-se todas as tendências desde Stradella e Gregori, com ênfase em Corelli e Torelli, até os tardios Locatelli e Geminiani; a Inglaterra de Purcell é revivida nos anthems, masques e odes comemorativas.

E para iniciar o estudo de Handel, deve-se primeiramente tomar como ponto de referência a personalidade do homem e as tendências psicológicas do artista: Handel possuía natureza cosmopolita e tinha como objetivo a arte de espetáculos. É muito importante ter isso em mente. Ele não podia e nem queria fazer uma música excessivamente profunda como era a obra religiosa de Bach, concentrada no espaço das igrejas luteranas da época.

Deve-se iniciar o estudo de Handel pela sua Música de Cena, ou seja, a Ópera. O compositor voltou-se integralmente para o Oratório somente quando não foi mais possível se dedicar à sua expressão preferida, a música cantada em palco com cenário. Mas em Handel há pouquíssimas diferenças entre os dois gêneros vocais: o encenado e o não encenado.

Depois do gênero dramático, para compreendermos Handel, só mesmo estudando a outra característica fundamental de sua obra: a voz. Apesar da preferência pela expressão teatral, foi, devido à sua Música Vocal não encenada, principalmente os seus Oratórios, também verdadeiros dramas, que ele passou definitivamente para a História da Música. São os maiores e mais geniais já escritos, surgindo daí a necessidade de estudá-los minuciosamente. São tantos no catálogo que nos perdemos à primeira vista, mas os maiores continuam sendo estes: Saul, Sansão, Israel no Egito (diferente, com total prioridade aos coros, contendo poucos trechos de voz solista) e o monumental e mais elaborado de todos Judas Maccabeus. E, por fim, o Messias, ápice dentre todas as obras de Handel, principalmente pela sua característica mais sublime: a espontaneidade. Se tivesse escrito apenas esse oratório já lhe estaria assegurada a imortalidade. Há outros, como os referidos acima, que estão no mesmo nível, mas a fluência e o frescor dessa obra relatando a vida de Cristo com tanta ternura a distinguem de todas as outras. Nem as elaboradíssimas cantatas que formam o Oratório de Natal de Bach conseguem suplantar o Messias de Handel.

Handel, portanto, era artista essencialmente vocal. Quando escrevia música instrumental era com um pouco de má vontade, embora jamais tenha sido pequeno nesses gêneros. Os concertos para órgão eram bastante populares em sua época, porque Handel os executava antes da publicação como aberturas e interlúdios das óperas e de alguns oratórios. Os concertos grossos, a melhor parte de sua produção orquestral, juntamente com algumas suítes, são peças brilhantemente construídas sem, contudo, demonstrarem inovações. Da mesma forma são as obras para cravo e as obras de câmara. As Sonatas Op. 1 são obra didática, mas bem diferente das de Bach, que se dedicava conscientemente ao ensino, considerando-o como uma das funções mais importantes de sua vida. (É impressionante a sua dedicação na idade madura e, depois, na velhice, aos dois livros do Cravo Bem-Temperado). Handel, não. Dedicava-se ao ensino somente nas horas de folga, para atender pedidos de algum editor ou de nobres que lhe mostravam contentamento, sabendo dos filhos aprendendo com o mestre. Na maioria das vezes, compunha para os gêneros instrumentais mencionados mais para satisfazer os seus interesses financeiros, pois a venda de partituras de obras nessa área retornava-lhe dinheiro mais rápido.

Os hábitos do músico e do homem Bach eram, de certa forma, provincianos. Viveu toda a vida na Alemanha em um círculo espacial restrito: Eisenach e arredores, Weimar, Koethen, depois Leipzig. Já Handel, o grande Urso Branco, conforme os contemporâneos o chamavam, era homem inquieto que gostava de viajar: deixou presença na Alemanha, Itália e Inglaterra. Sentia-se um cidadão do mundo.

A devoção de Handel era o palco, a sua manifestação artística era a dramática, e o seu principal instrumento de expressão era a voz. Eis as características handelianas: cosmopolitismo, teatro, voz humana (em coro ou isolada). E Luminosidade.

O padre Vivaldi escreveu música maravilhosamente luminosa! Luminosos são os Concertos de Brandenburgo de Bach - a música mais feliz e perfeita que já se escreveu. Mas a luminosidade mais poderosa é a de Handel - aquela que nos arrebata, que nos hipnotiza e nos faz cantar junto.

No mesmo ano de 1685 em que na Alemanha nasciam Bach e Handel, também surgia em Nápoles, a 26 de outubro, o genial Domenico Scarlatti, filho de outro importante músico, o Alessandro. O pai, famosíssimo na Itália, inibiu o talento do filho durante muito tempo. Apesar de receber encomendas de missas para a Basílica de São Pedro em Roma e óperas para Veneza e Nápoles, as obras do compositor filho, principalmente aquelas da juventude, eram apagadas e comuns. A poderosa sombra paterna o perseguiu até o momento da libertação: ao morrer o pai, Domenico nasceu artisticamente. Começou a compor peças para cravo enquanto ensinava a princesa Maria Bárbara, primeiramente em Lisboa, depois Sevilla e Madrid, quando ela se tornou rainha de Espanha. Scarlatti acompanhou-a e, semelhante a Handel em relação a Inglaterra, o compositor napolitano adotou sinceramente a Espanha como segunda pátria. Essa terra ensolarada com a presença musical dos gitanos foi uma revolução em sua arte: somada à sua genialidade, tudo que viu e assimilou do país transformou-se em uma das mais ricas músicas de que se tem notícia. A Obra para Cravo de Domenico Scarlatti é de uma prodigiosa verve rítmica e de uma criatividade melódica tão inovadora que sempre há de nos espantar e maravilhar.

É sempre risível o ato de colocar obras e artistas em pódios como se fossem desportistas em competição, mas em alguns casos não há como evitar. Scarlatti é o maior compositor para cravo de toda a história da música. Nem mesmo a complexa inventividade de Bach consegue suplantá-lo. Não há como escolher as melhores entre as mais de 500 peças para esse instrumento que Scarlatti escreveu. Então não escolha! Ouça-as indiscriminadamente que o lucro será o mesmo, sem deixar de lado a lembrança: elas não foram compostas para serem executadas no piano, mas sim no cravo, onde elas brilham com a natural intenção do compositor. Tenho certeza de que se pudéssemos conhecer todas, perguntaríamos: por que ele não escreveu mais 500 obras assim? Guardada a diferença de gêneros, considero-as, pelo alto nível artístico, tão versáteis e magistrais quanto as cantatas de Bach.

Eu, por exemplo, e isso é ato individual, quando preciso de energia rítmica, dinamismo aos atos do cotidiano ouço Domenico Scarlatti, que me impulsiona e vitaliza. Nos momentos em que sinto vontade de compenetração para mergulhar nos interiores íntimos da fé, da reflexão ao êxtase dos mistérios, para empreender jornadas em busca do interelacionamento Criador e Ser criado, ouço Bach. Quando quero a expansão, o vôo através de livres panoramas sem filosofar sobre o motivo do céu ser azul e verdes serem as relvas, apenas sentir a presença do sublime e natural êxtase, ouço Handel.

Mas, a verdade é que não se resume a arte de tão grandes compositores em tão breves palavras. As analogias são imperfeitas da mesma forma que são inexatas as definições - jamais podem dar total idéia da individualidade de cada um, porque cada autor ou obra tem a sua voz própria e distinta. Além disso, cada ouvinte percebe as nuances de modo diverso.

A música de Johann Sebastian Bach, Georg Friedrich Handel e Giuseppe Domenico Scarlatti sempre há de nos levar a êxtases diferentes e renovados.

Algumas curiosidades históricas para terminar esta breve explanação:

Bach e Handel, os dois maiores gênios da era barroca nascidos na Alemanha, nunca se encontraram, embora tenham nascido com diferença de menos de um mês um do outro (o segundo a 23 de fevereiro, o primeiro a 21 de março), e em cidades cuja distância não ultrapassa os 150 km (Eisenach e Halle).

Bach sentia uma profunda admiração por Handel, que era muito mais famoso devido às óperas constantemente apresentadas em Londres e na Europa. Certa vez, Bach locomoveu-se até Halle para conhecer Handel, pois recebeu a notícia de que o Urso Branco procurava cantores para sua nova ópera, e aproveitava o tempo para visitar a mãe. Mas uma ironia do destino providenciou para que houvesse o desencontro. Ao chegar na cidade, Handel já havia partido de regresso à Inglaterra.

Por outro lado, Handel, quando de suas andanças pela Itália, tornou-se grande amigo de Domenico Scarlatti. Ambos eram jovens de 23 anos com a cabeça imersa em sonhos e ambições musicais. Em 1708, os dois compositores e virtuoses do teclado se conheceram em Veneza e juntos seguiram viagem para Roma. Nem imaginavam que iam registrar perenemente os respectivos nomes nos anais da história da música, e nem podiam imaginar que o destino os levaria para outros lugares, países que adotariam como pátria, onde morreriam distantes dos locais de origem: um, na Inglaterra; o outro, na Espanha. Embora não tivessem se encontrado de novo, a amizade durou a vida toda, através de cartas assíduas, permanecendo a mútua admiração.

Chegará o tempo em que não mais existirão as demarcações territoriais que distinguem uma terra chamada Inglaterra, ou Alemanha, ou Itália, Brasil ou EUA. Outros povos ali habitarão, com outros hábitos e denominações, com sentimento de pátria e idiomas irreconhecivelmente transformados. Porém, seja nos conglomerados urbanos, seja nos cantos mais remotos do planeta, se existirem pessoas capazes de ler e exercitar os escritos musicais deixados pelos mestres, além de outras gentes com sensibilidade e boa vontade o suficiente para soprar na cinza a brasa que a faz viver, então não estará perdida a Grande Música. As artes, entre elas a música, estas sim poderão sobreviver aos mesquinhos propósitos de todas guerras e impérios.