Não adianta ignorar o sofrimento e virar a face para não ver as coisas tristes do mundo. Ora, elas existem!
Essas palavras fazem-me lembrar de uma história ocorrida há seis séculos antes de Cristo, em Lumbine, sul do Nepal. É a história de Siddharta Gautama, o príncipe hindu, nascido e criado em um palácio repleto de esplendores. O seu pai era um rajá e quis criá-lo distante da tristeza e da dor, mostrando-lhe apenas coisas belas, para que o filho não tomasse ciência das misérias do mundo. Assim, ele cresceria sempre feliz, pensava o pai. Quando Siddharta completou dezoito anos, ele sentiu uma grande curiosidade de conhecer o misterioso mundo além dos muros do palácio. O pai, muito preocupado com o que o filho poderia ver, preparou a cidade, organizando uma bela festa. Tomou o máximo de cuidado para que ficassem escondidas a pobreza e a miséria e, assim, a recepção ao príncipe mostrou-se em cenas repletas de alegria, como se a dor e a tristeza pudessem ser ocultas para sempre. Siddharta desconfiou de tudo aquilo. Passado algum tempo, ele teve uma idéia: disfarçou-se de homem comum e saiu com Chana, seu cocheiro. Então, caminhando pelas ruas da cidade, viu um velho com a pele amarela enrugada, depois viu um homem doente e um outro mendigando o pão e, por fim, presenciou um enterro em que o povo carregava um corpo apagado e inerte. A partir desse dia começou a questionar sobre o enigma da existência: Por que os homens sofrem? E não houve meio, teve que seguir o seu destino. Aos vinte e nove anos, deixou a esposa e o filho, ainda bebê, e foi em busca da resposta, compreendendo que existiam mais coisas além de seus palácios e de seus belos jardins. Viveu durante seis anos como um eremita, tendo vida de asceta e vivendo de esmolas. Mas não encontrou a iluminação através da completa renúncia aos bens materiais. Ele estava tornando-se apenas mais um mendigo, igual a tantos no mundo. Entretanto, continuou a perquirição. Siddharta ainda fez uma última tentativa. Sentou-se debaixo de uma figueira em uma aldeia do norte da Índia. Lá ficou durante 40 dias e 40 noites, sem comer, beber ou dormir, na convicção de que não se ergueria dali até compreender o mistério do sofrimento e uma maneira de amenizá-lo. E ele só se ergueu mesmo quando obteve a resposta. A partir de então, o príncipe Siddharta passou a ser conhecido como o Buddha, que em sânscrito significa ‘Iluminado’.
Embaixo da figueira sagrada, chamada ‘Bo’, Buddha havia meditado muito. Descobriu uma grande verdade e passou a ensiná-la aos primeiros discípulos: “O caminho além da tristeza e do sofrimento é o caminho do meio, entre a austeridade e a sensualidade.”
Buddha era um espiritualista inteligente. Ele chegou à conclusão de que pouco adiantava a martirização do corpo com penitências e jejuns prolongados e tanta coisa mais. Dizia que quando o corpo está desnutrido o espírito também enfraquece e não raciocina direito. Creio que esse pensamento é sabedoria.
No Sermão de Benares, Buddha disse: “A sensualidade é enervante, o homem que se entrega aos prazeres é escravo de suas paixões e a busca do prazer é degradante e vulgar. Mas não há mal em satisfazer às necessidades da vida. Conservar o corpo em boa saúde é um dever, pois de outro modo não seremos capazes de aparelhar a lâmpada da sabedoria e conservar nossas mentes fortes e claras. A água cerca a flor do lótus, mas não molha suas pétalas. Este é o caminho do meio, ó bhikkhus, que se mantém distante dos dois extremos.”
Eu compreendo as palavras de Buddha da seguinte maneira: O caminho do meio é a moderação. Não esbanje alimentos! Faça jejum, mas não demore muito nele! Faça sexo sim, mas não se deixe escravizar por ele! Beba a sua cerveja ou a sua cachaça, mas saiba o momento de parar! O correto é não abusar dos prazeres físicos, mas também não deixe faltar alegria para o corpo. Não deixe de fortalecer a matéria, mas não se esqueça: ela é transitória. Só o espírito é eterno.
O Siddharta Buddha citava as “quatro verdades nobres: a existência implica sofrimento; o sofrimento resulta do desejo; o desejo pode ser destruído; e para destruí-lo deve-se seguir os oitos nobres caminhos que incluem idéias, desejos, fala, conduta, meio de vida, esforços, atenção e meditação justos e corretos.” Nessas quatro verdades e nesses oito caminhos o Budismo apóia toda a sua doutrina.
É justamente o desejo que movimenta o mundo. O sistema capitalista incentiva muito o desejo de posse, pois sem ele não há consumismo. E sem consumismo as engrenagens do sistema não funcionam. É desejo de possuir um carro esporte último modelo, é desejo de possuir uma mansão na praia, é desejo de possuir uma linda jovem. É o desejo da matéria sem alma dentro. Isso é tolice. E o sofrimento das pessoas continua. Não lhes sobra tempo para pensar na alma, porque elas têm que lutar muito para conseguir uma posição social superior. Ora, a verdade é que a maioria não consegue satisfazer o seu desejo de posses. Apenas uma minoria consegue: compra, compra, compra, mas isso não preenche o vazio. Então, as pessoas sofrem, sofrem. A maioria sofre porque nada consegue. A minoria sofre porque consegue, e descobre, lá no íntimo com os seus botões, que a posse material é ilusão, é uma satisfação que dura o instante de um suspiro. O que dá alegria à alma é outra coisa: é fazer o bem aos outros, é sentir o quanto as pessoas ficam agradecidas por isso. Riqueza duradoura é saber que as pessoas nos amam pelo que somos e não pelo que temos. A frase é tão velha que causa inveja ao pergaminho em que foi escrita e, mesmo assim, parece-me que ainda não compreendemos a sua essência.
Bons pensamentos, bons desejos, palavras que consolam a dor de outros, conduta correta, maneira de viver honesta, esforço para vencer as imperfeições, atenção ao sofrimento das pessoas e muita meditação. Eu creio que esses oito caminhos, independentes de conceitos religiosos, podem nos levar, um dia, ao Reino de Deus. E se não existir Céu, se não existirem recompensas nem nada, como os materialistas (dogmáticos!) insistem em afirmar, há pelo menos um consolo: agindo corretamente com as pessoas encontraremos um pouco de paz interior e uma alegria mais verdadeira aqui nesta Terra mesmo.
Buddha estava muito velho quando morreu e, evidentemente, muito mais sábio. Acredita-se que as suas últimas palavras, ditas ao discípulo Ananda, que o segurava entre os braços, foram estas: “A decadência é inerente a todas as coisas. Trabalhe para a sua própria salvação com perseverança.”
Buddha usou de ironia em seu último suspiro, mas teve compaixão, demonstrando o quanto compreendia a incoerência da loucura humana. O mais cômico na espécie da qual fazemos parte é que, pelo fato de termos um corpo que respira, que anda, que ri e chora, pensamos que assim estamos totalmente vivos, e por isso... morremos de medo de morrer. Ora, ninguém quer envelhecer, mas a velhice vem. Ninguém quer morrer, e não adianta espernear, a morte vem mesmo. Essas são verdades irrefutáveis. Temos que conviver com elas e aceitá-las; ou meditamos sobre o mistério do desconhecido ou sucumbimos sob o peso do medo da morte e do que pode existir depois dela. Pois é certo que a angústia do medo da morte engaiola lentamente as asas do espírito, turvando a visão e enrijecendo a capacidade de voar para novas dimensões quando é chegada a hora.
Em meu modesto pensar, compreendo que a maior lição de Buddha é o incentivo para que descobríssemos dentro de nós a sabedoria da moderação, para que aprendêssemos a enxergar o ponto do meio que há em todas as coisas: o equilíbrio. Nessa investigação inclui-se também, e principalmente, a desconfiança: Desconfiem de tudo que é excessivo, até mesmo dos homens que são excessivamente santos. Desacreditem da onisciência dos mestres para que o Mestre interior seja ouvido e compreendido. Muitos guias podem orientar; outros podem confundir muito mais. Krishnamurti, muitos séculos depois de Buddha, também descobriu esse caminho, por conta própria, e nos alertou sobre a falibilidade dos mestres, admiravelmente, se considerarmos a sua coragem na abdicação de líder santo a que fora preparado.
No entanto, essa também é uma via de extremos. O ideal é abrir sim os ouvidos às palavras dos Mestres, e com lucidez retirar delas a mensagem que coaduna com a nossa própria descoberta íntima. A verdade, porém, é que cada um tem o seu exato momento de encontrar a iluminação, embora em menores proporções do que Aqueles Espíritos superiores que a vislumbraram e a compreenderam sob a figueira Bo ou sobre o Gtsemâni.
Existe um ponto central em nosso coração onde nenhum mestre ou guia nos consegue levar a não ser nós mesmos. Eles podem sugerir caminhos, podem nos auxiliar nos primeiros passos, podem nos amparar sob o sol ardente e nas etapas difíceis da caminhada, mas o encontro com o Eu verdadeiro é sempre solitário, essa missão é só nossa, de mais ninguém. Mas, para nosso alento, existe essa Voz única que nos pode conduzir na solitária jornada ao coração de nosso próprio mistério, ao Deus que habita em nós. Ouça-a no frescor de cada manhã e notará que o Tao, o Nirvana, o Reino dos Céus têm algo em comum: o milagre da existência. Faça bom uso dessa oportunidade: a de agradecer Átman, a Alma, a centelha divina dentro de nós. Aprendam com o sofrimento, mas não se esqueçam de assumir o direito e o dever do encontro com a alegria.
E, concluindo, não creio que haja ilusão nesta assertiva de Buddha: Cuidado com os extremos!
Pois compreendo que olhar diretamente para o sol não é diferente do mergulho na escuridão da noite. Tanto as trevas como a luz em excesso cegam a visão. Ambas obscurecem o caminho.
(em "Sobre a Cinza e o Fogo: Pequenas Reflexões")