quarta-feira, 5 de março de 2014

Villa-Lobos: 4 Bailados do Amazonas



Heitor Villa-Lobos nasceu no dia 5 de março de 1887 e faleceu em 17 de novembro de 1959, com a idade de 72 anos. Rio de Janeiro foi o seu berço e também o seu último leito. No percurso, uma vida inteira dedicada à música. De sua inspiração surgiram muito mais de duas mil obras em todos os gêneros: suítes orquestrais, sinfonias e concertos, peças para instrumento solo (piano e violão), quartetos de cordas e as mais inusitadas formações de câmara, centenas de canções para voz solo, corais; e como se não bastasse toda essa prolífica obra, ainda lhe restou tempo para compor alguns balés, óperas e trilhas para dois filmes. Hoje, após mais de 50 anos de sua morte, a arte musical de Villa-Lobos, gênio tupiniquim, permanece mais viva do que nunca, executada com entusiasmo nas mais importantes salas de recitais e concertos do mundo todo.

Essa denominação de 'gênio tupiniquim' é apenas uma saudável brincadeira, pois é bastante conhecida a indignação - uma indignação bem humorada, em tom de galhofa - que o próprio compositor demonstrava ao ser chamado de ''compositor brasileiro'', retrucando que ninguém se refere a Beethoven como músico alemão, ou Mozart, austríaco. Sim, entendemos... Então o qualifiquemos da forma como gostaria de ser chamado: Villa-Lobos, compositor nascido no Brasil, cujas obras foram criadas para a Humanidade, de qualquer tempo e de qualquer lugar. Enfim, Heitor Villa-Lobos, homem do Brasil, artista do mundo.

Na década de 40, nos EUA, quando Villa-Lobos foi considerado o maior compositor das três Américas, muita gente importante da música torceu o nariz, porém não havia exagero nessa elevação superlativa. Copland, o compositor mais querido dos americanos, embora discordasse de alguns pontos de vista estéticos de Villa-Lobos, o respeitava muito. No México, Manuel Maria Ponce e Carlos Chávez dedicavam-lhe reverência. O grande Ginastera da Argentina sempre demonstrou-lhe humilde gratidão. Isso só para citar nomes de peso da música erudita de outros países das Américas.

É difícil catalogar uma obra como a de Villa-Lobos, tão vasta como a própria selva amazônica, caudalosa como nossos rios, rica como a flora e a fauna de nossas florestas e campos, exoticamente melodiosa como o canto de nossos pássaros. Apesar de muitos defeitos, principalmente na orquestração excessiva, às vezes de exaustiva prolixidade, ou na falta de inspiração de várias obras de encomenda, ou da grande quantidade de coros cívicos e obras comemorativas de valor apenas para a ocasião, a inspiração de Villa é exuberante, sincera e de alta qualidade em pelo menos 50% da totalidade de sua criação.

Para avaliar a grandeza de Villa-Lobos, além das duas séries mais importantes: os Choros e as Bachianas Brasileiras, que já são obras-primas da música clássica moderna, bastaria mencionar a impressionante série de quartetos de cordas, 17 ao todo, e um inacabado, que escrevia quando morreu. É só lembrar que Hindemith compôs 7; Bartók, 6; Schoenberg, 4; Debussy, 1; Stravinsky, nenhum, para compreendermos a prolificidade villalobiana. Esse gênero difícil, pouco frequentado pela maioria dos compositores, foi o foco de atenção de Villa-Lobos em sua última década de vida, e vários desses quartetos permanecem como algumas de suas obras mais ricas. Quando a quantidade é citada, pensa-se que o número inibe o talento, mas não; diferente do que ocorrera com as sinfonias e vários concertos da última fase, a maioria escrita sob encomenda, e às vezes sem muita inspiração, os melhores desses quartetos de cordas foram criados pela necessidade do artista de dar voz a uma sensibilidade mais íntima.  

As sinfonias, em número de 12, mais as sinfonietas, não mostram o melhor de Villa-Lobos, com raras exceções, como a No. 6, de 1944, dita 'Sobre a Linha das Montanhas do Brasil', bela e interessantíssima em seu propósito criativo, ao seguir o gráfico da Serra dos Órgãos e torná-lo real em som; e talvez a No.10, a 'Sumé Pater Patrium' (1952), com texto do padre Anchieta. Mas esta é uma obra híbrida, mais um oratório do que sinfonia e, ainda assim, irregular; há momentos brilhantes e outros de uma inegável monotonia. O tema sacro não era o mais forte nem o mais sincero em Villa-Lobos, salvo quando podia contrapô-lo a um tema secular ou a uma crença diversa, como é o caso do grandioso e fascinante coro 'tupi' na Suíte No.4 de 'O Descobrimento do Brasil'.  

Já os 17 quartetos de cordas, ricos em profundidade, técnica, e sobretudo maturidade artística, hão de permanecer, e já bastariam para destacar Villa-Lobos como um dos maiores compositores, não somente das Américas, mas de todo século XX.

Com a devida justiça, Villa-Lobos, já é considerado pelos musicólogos de renome como um dos mais criativos compositores da história da música, e o mais significativo do continente latino-americano no sentido de englobar a música erudita, a folclórica (principalmente a ameríndia e a nordestina) e a popular (choros e modinhas do Rio de Janeiro, modas de viola do cancioneiro rural paulista e mineiro, etc.)

Há algumas décadas, afirmar com ênfase a genialidade de Villa-Lobos, seria motivo de riso para alguns críticos resistentes, mas hoje sabemos que de todos os lados do planeta aparecem gravações de obras do "índio de casaca", que seria do Brasil, se já não o fosse do mundo todo. Músicos admirados executam e proclamam a excelência dessas peças; ouvintes entusiastas divulgam-nas, realçando a emoção e a vida que há nessas criações. A frase inscrita na lápide de Villa-Lobos, a pedido do próprio: "Considero as minhas obras como cartas que escrevi à posteridade sem esperar resposta" não tem mais sentido, pois a posteridade já responde a essas "cartas" com júbilo e agradecimento.

De que maneira homenagear um grande compositor na data de seu nascimento, senão ouvi-lo com o mais respeitoso silêncio? Por isso, hoje, com a oportunidade de prestar minha reverência a um de meus compositores preferidos, escolhi quatro obras para ouvir. Todas têm em comum o fato de explorarem o tema da floresta amazônica, e pelo menos três delas foram escritas originariamente para a dança. A seleção é minha. Não existem como um todo em nenhum álbum gravado.


Amazonas (1917) poema sinfônico e bailado para orquestra. É a primeira obra-prima de Villa-Lobos. Utiliza melodias indígenas coletadas durante sua viagem ao norte do país. Mário de Andrade, que às vezes errava em seus comentários musicais, mas que também acertava, tinha toda a razão quando ouviu o bailado pela primeira vez e exclamou que ali irrompia o verdadeiro gênio de Villa. É uma música visceral e nos envolve desde o início com a presença do Amazonas, o rio mais imponente do planeta, e da paisagem selvagem da floresta que o circunda, cujo solo se oculta em cipós e ramagens escuras que se estendem cada vez mais ao alto pelas copas intrincadas das árvores. A peça musical é exata: a sensação é de claustrofobia. Um dinamismo de vida macro e microscópica nos toma a imaginação: ruídos, sussurros de animais e canto de aves exóticas re-inventados por uma orquestra experimental, introduzindo o violinofone (trompa+violino), instrumento inventado pelo Villa. Embora a orquestração em muitos trechos seja caótica, se comparada à límpida escrita neoclássica de Camargo Guarnieri, não deixa de ser original e ousada. Tanto que, anos depois, foi muito elogiada por Messiaen.

Uirapuru, o outro poema sinfônico e bailado para orquestra, escrito em 1917, apesar de menos comentado e menos famoso do que 'Amazonas', não é, de maneira alguma, inferior. Considero-o mais rico e imaginativo. Além de utilizar também temas aborígenes primitivos, colhidos por Roquete Pinto, Villa-Lobos constrói sobre a linha melódica do canto do pássaro Uirapuru uma arquitetura sonora mais do que admirável. Variando as três ou quatro notas da melodia da ave a música vai sendo exposta lentamente formando a estrutura orquestral, semelhante ao que fez Beethoven na 'Sinfonia No.5'. Em ambos os casos são pouquíssimas notas, células que vão se bipartindo e aumentando até surgir um tecido complexo.

O libreto foi escrito pelo compositor, adaptado das inúmeras narrativas dos indígenas e caboclos do Amazonas aos folcloristas: "...Conta uma lenda que a magia do canto noturno do Uirapuru era tão atraente, que as índias sumiam, durante a noite, à procura do mágico trovador das florestas brasileiras, porque as feiticeiras lhes haviam contado que o Uirapuru era o rei do amor e o mais belo cacique da Terra."

Mas há outras nuances da lenda... O Uirapuru é uma ave rara, mesmo na imensa variedade de pássaros amazonenses. E raro é também seu canto. Talvez não seja o mais belo, pois há o Sabiá Laranjeira com sua riqueza de timbres. Mas o do Uirapuru é um canto mágico, varia de ritmo e melodia, como uma improvisação. E nem é essa peculiaridade que o diferencia de outros, e sim a acentuada melancolia. Sendo um pássaro cuja espécie nunca foi numerosa, acredita-se que no tempo do acasalamento surge a dificuldade de encontrar a parceira. Então, quando se ouve no anoitecer ou no amanhecer a sua melodia triste, imagina-se que ele esteja chamando a companheira. E a floresta inteira para sentindo a solidão do Uirapuru. E, de fato, dizem que essa cantiga triste é precedida por um inquietante silêncio nas matas, que dura enquanto dura o seu canto. Essa versão da lenda é bem possível que seja uma invenção poética como metáfora da solidão do artista. E há lógica na comparação, pois os artistas são admirados pelo mais belo canto que possuem, mas pouco compreendidos quanto ao motivo que os impulsiona a emitir esse mesmo canto. São solitários mesmo ao lado daqueles que mais amam. Evidentemente, é rara a companheira que poderá ouvir esse chamado.

Mandú-Çarará (1939), cantata profana para coro misto, coro infantil e orquestra, que é também um bailado. Extraída de uma lenda amazônica colhida por Barbosa Rodrigues, é simplesmente outra obra-prima de Villa-Lobos que deveria ser mais conhecida e comentada. É a apoteose índia da dança.
 
Vasco Mariz em seu famoso livro sobre Villa nos conta sobre o conteúdo da lenda e da peça: "Abandonado na floresta pelo pai, por gostarem de 'Mandú-Çarará', a encarnação da dança, um casalzinho de irmãos depara subitamente com o Currupira, que procura atrair os dois para a sua cabana e comê-los. O autor conseguiu aqui uma feliz conjugação dos coros infantil e adulto, pintando de maneira expressiva a conversa de Currupira com as crianças, atemorizadas pelos gritos do monstro, em glissandi. Após um breve trecho orquestral, surge o tema do 'Mandú-Çarará', a princípio nos baixos e barítonos, para se estender a toda a massa coral com sonoridade empolgante. As crianças conseguem, enfim, enganar o Currupira e, após muitas peripécias, encontram a casa dos pais, onde já os aguarda o 'Mandú-Çarará' para dançar e brincar."

Choros No.10 (1925) para orquestra e coro, aqui é a única que não foi escrita diretamente para a dança. Alguns anos depois de sua composição original foi adaptada e coreografada para bailado, primeiro no Rio de Janeiro, depois em Paris por Serge Lifar, com o título de 'Jurupari'. Mesmo entre as mais fascinantes criações do mestre, essa obra merece um lugar de destaque. Trata-se, com certeza, da maior obra-prima de Villa-Lobos , e quanto à fama, só perde para a famosa 'Aria' de 'Bachianas Brasileiras No.5'. No entanto, existem várias obras do mestre que estão no mesmo nível em genialidade, força e beleza.

Novamente aqui, semelhante às três obras anteriores, a floresta amazônica, densa, imensa, misteriosa surge aos poucos no amanhecer. Ao contrário do bailado Amazonas, que é de tonalidades escuras, neste 'Choros No.10' Villa-Lobos supera-se a si mesmo na reconstituição da mata que desperta no lusco-fusco da aurora seguido pela claridade matinal. A flauta é a primeira a aparecer, sugerindo o canto do Azulão; depois, as flautas e as clarinetas soam como gorgeios e trinados de pássaros que vão unindo-se a ruídos de insetos que chiam e zunem. A fauna lentamente toma nuances e formas incitando-nos a sentir a flora luxuriante dos bosques e selvas. A metade da peça é orquestral. A partir daí aparece o coro; primeiro as vozes masculinas; depois as femininas com sons onomatopéicos em vocalises que aumentam de intensidade, pouco a pouco, mostrando o elemento humano, os indígenas que iniciam o dia em seu meio natural. O ritmo das vozes é sincronizado de tal maneira com os tambores e timbales que não é difícil enxergar a poderosa dança na taba: guerreiros e esposas saudando o sol. O êxtase de júbilo que vem a partir daí com a polifonia de vozes agudas e graves entrelaçando-se é o momento mais sublime e representativo da música erudita brasileira. A contagiante verve do coro associado aos instrumentos indígenas e sincronizados com a melodia quase selvagem de toda a peça, no final eclode na música "Yara" de Anacleto de Medeiros, que ao receber letra de Catulo da Paixão Cearense, tornou-se "Rasga Coração". Villa-Lobos fez isso, durante toda a vida: quis unir o folclore, o erudito e o popular. Mas somente no 'Choros No.10' ele o conseguiu da forma mais perfeita, sincera e grandiosa. 

***
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Amazonas
Czecho-Slovak Radio Symphonic Orchestra (Bratislava)
Roberto Duarte, conductor

Uirapurú
Stadium Symphonic Orchestra of New York
Leopold Stokowski, conductor

Mandu-Çarará
Sistema Nacional de Coros Sinfónicos
(Zulia, Tachira, Merida y Metropolitano)
Niños Cantores del Nucleo Los Teques
Sinfónica de la Juventud Venezolana "Simon Bolívar"
Roberto Tibiriçá, director 

Choros No. 10 "Rasga o Coração"
OSESP: Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
Coro Sinfônico do Estado de São Paulo
John Neschling, regente



segunda-feira, 3 de março de 2014

Conto Oriental


Ah, branca ave,
branca e bela no cativeiro,
como podes tu cantar ainda?
se o horizonte é mistério
e a tua espera é eterna
e tanto voas mas só
no sonho interrompido?

De que é feita essa melodia
triste como os caniços
onde o vento sopra e sopra
e depois vira rumo e te deixa
vazia - flauta que soluça?
Esse cantar que amo?
para mim apenas
é que amo assim?

Liberta a ave!
disse-me, um dia, o sábio hindu,
com ternura.
Ama-a, ama-a sempre,
mas lá na natural morada,
nas nuvens distantes,
feliz na própria canção de viver.
Momentos há - disse-me ele -
que o maior amor
é libertar o que mais se ama.

Numa noite a meditar à lua clara,
do velho brâmane
a refletir o bom conselho,
compreendi, por fim.
E no outro dia - era primavera,
mas as flores não sorriam -
ouviu-se na gaiola dourada
a portinhola que se abria.
Silenciosas - as palavras.
Sorri, apenas sorri
para a avezinha tímida -
a mesma que me trazia o sol
todas as manhãs:

Voa, ser que amo,
voa livre, segue em paz
para o teu Azul!






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