quarta-feira, 29 de abril de 2009

Canção de Outono



Poderá você, algum dia,
quando mirar o rosto no espelho,
ver junto de seus cabelos ao vento,
um pouco de minha face antiga?
um pouco de meu sorriso?
um pouco de minha vasta saudade?

Terá permanecido em suas retinas
um pouco de tudo?
Terá permanecido alguma sílaba
que não foi dispersa pela brisa?
alguma marca
que não foi obscurecida pela névoa?

Terá permanecido em você
um pouco da canção de meus olhos?
Teria permanecido a flutuar
no mar de sua memória
uma parte visível
de meu veleiro de nuvens?



segunda-feira, 27 de abril de 2009

Shakespeare



Há alguns dias, li de um crítico a seguinte frase: Shakespeare é muito popular. Popular? Mas como? Com certeza, de nome ele é, e quanto às obras? Shakespeare é lido? Multidões vão ver as suas peças encenadas em seu habitat natural: o palco de teatro? Não creio.

As comédias de Shakespeare foram muito populares na sua época. Quanto a isso, não há dúvidas. E tal fato vem ocorrendo, mas em proporções menores, desde o período elisabetano, em que o dramaturgo viveu. Ao criar as suas peças neste gênero, utilizou temas e diálogos ao gosto do povo, artifício deveras arguto. Eram mencionados no texto assuntos do dia, chistes e trocadilhos, de fácil compreensão, muito mais para aquela época, a ponto de hoje nos fugir do entendimento o que significavam, se não os buscarmos nas fontes históricas. Shakespeare e o Teatro precisavam sobreviver. E para tanto a casa de espetáculos precisava de gente para assisti-lo. Principalmente as comédias ditas "italianas" são ricas em ingredientes populares, e As Alegres Comadres de Windsor utiliza o folclore que os ingleses conheciam bem de longa data; tinham o Falstaff assim como nós temos Malazarte, embora com características psicológicas diferentes. Tais peças estão entre as melhores do gênero: Os Dois Cavalheiros de Verona, Trabalhos de Amor Perdidos, Como Gostais, Noite de Reis, e a fantástica Sonho de uma Noite de Verão, que não é "italiana", mas é uma das melhores da primeira fase. Deliciosas e maravilhosas são essas comédias destinadas ao povo, o que não significa que eram simplórias. O jogo de palavras é de uma perspicácia sempre admirável, da mesma forma que o são os ditados populares em todos os cantos da terra. Enfim, são peças de conteúdo popular, mas de elaborada estrutura formal. Essas comédias ainda fazem sucesso no mundo todo, devido à habilidade do dramaturgo de recriar situações cômicas, e principalmente pelos inteligentes diálogos, que demonstram o jogo da sedução; do mesmo jeito que eram deliciosos na época, permanecem vívidos e atuais, de compreensão para todos, senão os chistes, ao menos a intenção dos pares que se escondem e aparecem, que açulam e se negam, alternando-se como gelo e fogo, com o objetivo de aguçarem o instinto de erotismo. E isso é entendido muito bem tanto naqueles como nestes tempos.

Não podemos chamar Shakespeare de ‘popular’ só por causa disso. Sabemos que o maior legado desse genial dramaturgo está nas tragédias e na última peça A Tempestade, que não é propriamente uma comédia, mas sim tragicomédia, ou ‘romance’, uma espécie que não se enquadra em gênero dramático algum; é uma fantasia, diríamos. Excetuando alguns intelectuais e homens de leitura, essas tragédias eram assistidas por um povo que não as compreendia; a platéia bocejava e ou ria em trechos onde não havia motivo para riso. Entediados, muitos erguiam-se e deixavam o lugar antes do final. Até hoje essas peças trágicas não se tornaram populares, mas sim popularizadas, mais pelo nome e pela trama do que pelo conteúdo literário. Todos conhecem Romeu e Julieta, a tragédia escrita na mocidade de Shakespeare; quase todos sabem da demência juvenil de Hamlet, da demência senil do Rei Lear, do ciumento Otelo, do invejoso Iago e da ambição desmesurada da esposa de Macbeth, principalmente através de versões cinematográficas. Quantos realmente assistiram essas obras encenadas no palco ou as conhecem pela leitura atenta? Na própria Inglaterra, Shakespeare é lido cada vez menos, os jovens fazem careta ao estudá-lo, da mesma maneira que a maioria aqui torce a boca ao estudar Machado de Assis. Há muita erudição nessas tragédias shakespereanas, muita complexidade psicológica e filosófica no texto frontal e nas entrelinhas; de linguagem difícil são os dramas históricos; a poesia do teatro de Shakespeare é sofisticada e de altíssimo nível.

Pelo fato de Shakespeare ter vindo de família de camponeses e não ter frequentado uma universidade não significa que ele não tenha estudado muito. O nosso Machado de Assis também veio de família humilde e chegou a um grau espantoso de erudição. É evidente que Shakespeare estudou os clássicos, quando jovem, vivendo em Stratford-upon-Avon, e em Londres, enquanto guardava cavalos em frente ao Teatro Real. Seguiu estudioso por toda vida. Foi um autodidata. Durante um bom tempo demonstrou em seus textos falhas e equívocos, provenientes de uma cultura cheia de lacuna, por isso mesmo mais livre e audaciosa, o que geralmente não ocorre a acadêmicos; por conhecerem demais textos já existentes, temem plagiá-los, inibindo a criação espontânea. Não é o caso de Shakespeare, que foi ousado justamente porque conhecia menos de técnica e gramática do que deveria. Errou no início, mas com o tempo se aperfeiçoou, sempre de maneira autodidata, descobrindo a própria linguagem, associando o conhecimento 'acadêmico' com as tentativas pessoais de (re)invenção artística. Foi mais original do que seus contemporâneos. Mas não encontramos falhas iniciais como as dele em Christophe Marlowe, por exemplo, que estudou em Cambridge, e foi grande dramaturgo, contemporâneo, amigo da mesma idade e precursor de Shakespeare. Entretanto, a única peça de Marlowe que continua atual e representada é a tragédia Doutor Fausto, a mesma que depois se tornou um modelo para Goethe.

Tomo como base o percurso dessa evolução a partir da leitura dos próprios textos iniciais do poeta-dramaturgo. Por isso, afirmo: Shakespeare estudou muito os modelos clássicos. A Comédia de Erros, primeira peça cômica do autor, foi escrita a partir de Plauto, o comediógrafo latino. De estrutura nitidamente acadêmica é a primeira trilogia de Henry VI. Acadêmicos são os poemas Vênus e Adônis e A Violação de Lucrécia. Sim, obras do início, mostram-se imperfeitas e sem personalidade definida, mas a partir daí todas as criações de Shakespeare mostram-se evolucionárias, uma transmutação dos modelos greco-romanos, seja na comédia re-criando a divertida e eterna guerra entre os sexos, seja nas tragédias utilizando tudo quanto há de mesquinhez, falhas de caráter e conturbados desvios psicológicos dos personagens: a dúvida existencial, a loucura juvenil e senil, o ciúme, a inveja, a ambição desmedida, ira e arrogância na usurpação do poder. Todas essas tramas refletem o ser humano, de ontem e de sempre; não perdem a atualidade, portanto. As peças de Shakespeare permanecem atuais, assim como as tragédias de Sófocles e Ésquilo, ou as comédias de Plauto e Terêncio.

Chamar Shakespeare de ‘popular’ só porque escreveu comédias populares é o mesmo que chamar assim Beethoven porque compôs o Septeto, tão popular em sua época. Tanto as comédias do dramaturgo como essa peça de câmara são obras de autores de vasto conhecimento que também criaram arte popular de alto nível.

Há também outro caso em pauta: essa confusão toda alegando que Shakespeare talvez nem tenha existido, surgiu a partir de uma teoria inconsistente, em que atribuem ao filósofo Francis Bacon, homem de espantosa erudição, a criação de toda a obra do dramaturgo. São especulações de historiadores incompreensivos. Se fosse verdade, não existiria nos textos iniciais do maior poeta inglês as falhas de técnica e o estilo titubeante, comum aos jovens tanto naquela como em todas as épocas. A evolução de Shakespeare foi de uma ascensão impressionante, porém gradativa, que somente ocorreu no mesmo nível na obra daquele outro gigante: Beethoven. O início da obra de ambos não dá idéia do que viriam a se tornar quando amadureceram as emoções e os pensamentos. Teorizar e duvidar que Shakespeare não é o autor das próprias obras não tem qualquer sentido lógico. Se ao músico Beethoven não é negada a realidade de sua evolução, pelos estudos das partituras, por que é recusada a Shakespeare a autenticidade de sua autoria, se há livre acesso aos escritos originais de suas peças, as mesmas que estão publicadas em todas as línguas, e nelas qualquer estudioso pode notar a escala ascendente de aprendizado?

As pessoas não entendem que um gênio não nasce pronto. Na verdade, é o dom trabalhado que se torna talento; na maioria das vezes, trabalhado com muito suor e dedicação. Em alguns raros casos, esse talento transforma-se em genialidade. A contestação de autoria dessas obras cheira-me à inveja, uma desmedida inveja, proporcional ao gênio que as criou. Ou seja, novamente os Iagos continuam querendo destruir os Otelos triunfantes.



sábado, 25 de abril de 2009

Cícero Acaiaba: Os Quatro Elementos



Nesta oportunidade, quando estamos de luto pela partida do colega e amigo Cícero Acaiaba, atendo alguns pedidos de pessoas que já têm contato com a sua obra e de outras que ainda não a conhecem, e deixo aqui alguns versos escolhidos. Creio que são inéditos em livro. O próprio autor me presenteou com eles, após ler alguns de meus ensaios sobre Alquimia.

Cícero era muito versátil. Escreveu textos para os mais variados gostos, desde o soneto tradicional com métrica e rima até os versos brancos de complexa riqueza rítmica, passando pela simplicidade lírica da poesia amorosa e também pelas obras de circunstância, que foram muitas. Criou e adaptou-se dentro dos estilos romântico ou parnasiano, simbolista e impressionista, experimentando a escrita subconsciente do surrealismo, e até mesmo as tentativas pictóricas do concretismo. No meio de toda essa versatilidade e ecletismo, encontramos temas surpreendentes. Raramente o nível cai, mas sabemos que nem tudo permanecerá. Aquela parte com temática mais hermética e simbólica, que dá margem à interpretações diversas, tem chance de agradar diferentes gerações, devido à atemporalidade de estilo. Quando afirmo que a poesia de Acaiaba é uma das mais consistentes, belas e profundas deste país, refiro-me principalmente à esse um quarto, ou, talvez , metade da totalidade de sua obra.

Não é apenas o elogio caloroso de alguém que com ele conviveu e teve a oportunidade de ler e reler esse lado mais complexo de sua personalidade. É simplesmente a constatação de estar diante de um valor literário atemporal. Se tivesse nascido em países mais dados à cultura, na Europa, por exemplo, Cícero estaria há muito tempo reconhecido internacionalmente, sem favor algum. O que me entristece é a condição de ostracismo que encontra a sua obra no Brasil, há várias décadas. Entretanto, isso não choca ninguém. Ultimamente, neste país, os verdadeiros talentos trabalham nos bastidores, porque o palco está tomado pelos medíocres.

Os quatro sonetos abaixo são uma mostra da melhor parte da poesia de Cícero Acaiaba: a que utiliza metáforas e símbolos. São sonetos “modernos”, porque não utilizam rimas e métricas, apesar de estruturados nos quatorze versos de quatro estrofes. No lugar da rima, a assonância e a aliteração; substituindo a métrica, o ritmo. A dificuldade técnica em construções assim aparenta ser menor, mas não é. A exata musicalidade das palavras compensa a ausência de rimas, e a variedade rítmica é muito mais criativa do que a metrificação matemática do tradicional soneto.

Cícero não era estudioso da ciência esotérica e da alquimia dos antigos, mas conseguiu intuitivamente nesses versos a síntese dos quatro elementos. Até parece que o próprio Paracelso soprou em seus ouvidos conhecimentos milenares. É fantástico! E mesmo assim, não há novidade alguma no fato. Sabemos que os poetas são e sempre foram as antenas da raça humana, captam do Inconsciente Coletivo mistérios insondáveis do passado do mesmo modo que enxergam o futuro nas brumas do tempo presente. Cícero, como grande poeta que foi e é, possuía essa sintonia com o Cosmos, trazendo de dimensões múltiplas o tema e a inspiração para sua criativa obra, mas com o mérito de trabalhar exaustivamente essa expressão.

Basta uma única leitura para sentir os versos abaixo como algo superior, de conteúdo profundo e vasto, exposto através da forma elegante da arte. Como não perceber neles o conteúdo e, sobretudo, a beleza?

Além da intrincada temática de muitos versos de Augusto dos Anjos, não conheço na literatura brasileira nada parecido com esses poemas, que agora deixo aqui para que outros também os apreciem, pois já são patrimônio cultural. Esses versos, que certa vez recebi como presente, não são apenas meus. Precisam pertencer, por natural direito, a todas pessoas sensíveis.

O FOGO

Do contato dos corpos, desse atrito
dos pólos positivo e negativo
brilha a faísca azul, e após a chama
em pétalas de fogo se recorta.

Línguas flamantes que absorvem tudo,
deixando para trás carvão e névoa,
sua misteriosa combustão
vem das células rubras da membrana.

Na semente se hiberna e ela o esconde;
ao simples toque mágico do vento
árvore crepitante reacende.

Com fome de si mesmo alastra rápido
os galhos longos, trêmulos, vorazes,
até ser cinza – congelado fogo.

A ÁGUA

No berço frágil, lento e alvo das nuvens
as camândulas de água dormem calmas.
Esperam só pela maturação
quando vão ser em chuva transformadas.

No céu da tarde a noite acena e flâmula
borda o silêncio com veludo negro.
Depois, desabrochando-se as estrelas,
delas o orvalho suavemente cai.

Na fonte pura espumas de murmúrios
espraiam-se na várzea, e humildes, dóceis,
sorvem os animais o fim do dia.

No coração que amou e está sozinho
o sentimento flui, e chega aos olhos
cristalizado em pérolas de lágrimas.

A TERRA

Terra de que foi feita a minha carne,
e que depois da morte a ela volta.
Que concebe a semente nas entranhas,
de onde nasce o dourado mar das searas.

Favo marrom e extenso das raízes,
crebra usina da seiva que alimenta.
Ergástulo de gemas preciosas,
real laboratório da alquimia.

Terra seca que a chuva desaltera,
fértil matriz das flores e dos frutos,
do húmus manancial inesgotável.

Na urna secreta corpos decompõem-se;
da miscigenação dos elementos
somente se liberta o azul das almas.

O AR

Existe sem se ver, para que existam
os seres do planeta. E invisível,
é doce respirá-lo, bom senti-lo,
semeando nos pulmões grãos transparentes.

Esponja tépida que lima o sangue
das impurezas todas, determina
o firme ritmo do coração
marcando nosso tempo neste mundo.

A substância do ar, o oxigênio,
que o vento leva pelo céu, por vastas
florestas, e montanhas, e desertos,

na água do mar, dos rios e dos pântanos,
alimenta também a fauna aquática:
ar – taça diáfana em que flui a vida.


Cícero Acaiaba (1925-2009)


quinta-feira, 23 de abril de 2009

Cícero Acaiaba. O mestre nos deixa



No último 20 de abril, faleceu Cícero Acaiaba, poeta-maior, com quem tive muita proximidade na década de 90 em Varginha. Mas não pude homenageá-lo pela última vez, pois estava em viagem e só abri meus e-mails dois dias após, quando li a notícia enviada pelo amigo e escritor Aníbal Albuquerque, que há alguns anos escreveu a elogiada tese de mestrado Um Passeio pela Obra de Cícero Acaiaba, Talento Esquecido.

Cícero ficou famoso nas décadas de 50 a 70 como autor de peças para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Escreveu 130 novelas, que o tornaram campeão de audiência, junto com Janet Clair. Após esse período, foi redator do Caderno Literário da Imprensa Oficial em Belo Horizonte, retornando a Varginha, onde viveu o restante da vida. Escreveu 20 livros de poesia, publicou 10, além de 2 livros de contos, uma peça de teatro, inúmeras crônicas e a autobiografia Meu Pé Direito, em 5 volumes.

A literatura de Cícero engrandeceu o nome de Cambuquira, terra onde nasceu, e destacou Varginha, cidade onde viveu a maior parte de seus 85 anos de vida.

Como já disse várias vezes, Cícero Acaiaba não é apenas um dos maiores sonetistas do Brasil; com sincera convicção afirmo que pelo menos a metade de sua volumosa obra poética está entre o que de mais belo e sublime foi escrito neste país. Nos últimos anos, jamais obteve um maior destaque na mídia, apesar de bastante conhecido entre os literatos, entre os quais Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Caio Porfirio Carneiro, que eram seus amigos particulares e admiradores.

A minha admiração pelo poeta é imensa. Em um período de 10 anos, fui o primeiro a ouvir os seus versos, contos, crônicas e trechos de autobiografia, que o autor lia para mim, com entusiasmo, às vezes pessoalmente, às vezes por telefone. Acompanhei de perto o momento da criação e a voz emocionada do grande poeta interpretando a si mesmo em uma grande quantidade de textos. Aprendi muito com ele. Se fosse para escolher um epíteto que mais pudesse caracterizá-lo seria este: o mestre da metáfora.

Em 1987, o último cartão que Carlos Drummond enviou antes de falecer foi para Cícero Acaiaba, dizendo: "... a sua poesia é a continuação da minha." Apesar de estilos completamente diferentes, a produção poética de Cícero está no mesmo nível da de Drummond, tanto em forma quanto em conteúdo, mas a riqueza de metáforas do varginhense é muito superior.

A obra poética mais conhecida de Cícero Acaiaba é Poemas Escritos na Névoa (1982-88). É excelente, mas não é tudo. Há uma outra, que há mais de uma década está entre meus livros de cabeceira. Trata-se de A Última Elegia e 30 Noturnos de Minas (1987), que considero um dos mais ricos e fascinantes livros de poesia já escritos em todas as literaturas de todos os tempos. Curioso é que ele, grande sonetista, escreveu sua maior obra em versos brancos, em um estilo meio impressionista, meio surrealista, rico em imagens e musicalidade. Nesta obra, é muito difícil de escolher os melhores poemas, de separá-los para uma antologia; são todos de uma beleza inesquecível. Penso que nunca o tema da morte foi tratado com tanta sublimação.

Agora, com a morte, tema sobre o qual tanto escreveu, Cícero Acaiaba torna-se também encantado. A mídia, que o rejeitou, talvez corra atrás de sua obra, que está dispersa em sebos ou mofando em prateleiras de leitores pouco entusiastas. A novela que ele escreveu para a Rede Globo, e esperou com tanta ilusão ver na telinha, o que nunca aconteceu, após tantas desculpas, talvez agora seja negociada. É a festança que tem direito aqueles que não estão mais entre os vivos, podendo o ausente ser chamado até de gênio, sem prejudicar a inveja alheia. Talentoso, porém morto. Mas tudo isso já não importa mais. Talvez a posteridade se encarregue de criticar ou elogiar, talvez providencie e teça louros à sua memória; talvez, não. Porém Cícero Acaiaba não precisa mais de se preocupar com reconhecimento algum.

Aqui fica a minha homenagem, através de seu próprio poema que dá título à obra que continuarei amando e admirando, profundamente: A Última Elegia e 30 Noturnos de Minas.

Obrigado, Cícero, pela riqueza, pelas pérolas de arte, pelos momentos espirituais de comovente beleza que nos deixou!


A ÚLTIMA ELEGIA


1

Eu não estarei aqui amanhã.
Haverá mais um ausente nesta mesa,
e na parede um retrato instantâneo.
No quarto, os móveis nos mesmos lugares,
as janelas com as cortinas lisas,
e uma cama para sempre arrumada
na esperança do hóspede.
Mas eu não estarei aqui amanhã,
nem depois nem nunca.
Talvez na casa ressoem meus passos
um certo tempo,
talvez se escute altas horas da noite
a respiração pausada,
as páginas velhas de um livro
ou o embaçado monólogo de insônia
que o relógio da sala acompanha.
Tudo irá desaparecer aos poucos,
o hábito voltará a tecer a rotina,
e aqui será de novo uma casa pacificada.

2

Sinto a antecipada amargura das coisas findas,
estranha saudade do quarto estreito, da estante de livros,
da escrivaninha onde latejava a semente dos poemas,
da janela que era a viagem para o mistério da noite.
Sinto a presença lúcida do espelho,
o jogo brusco de imagens em seu túnel de segredos,
sinto medo
de não reconhecer meu rosto na turva superfície.
E sinto um gosto,
uma longínqua e brumosa tarde,
a chuva garoando lenta ofuscando a cidade,
sinto um gosto de infância na tarde que chove.
Sinto depois os retratos
na parede do corredor penumbra,
um diante do outro como vagões de um trem
a caminho do tempo.
Sinto as vozes na sala,
mas distantes apagadas,
vozes nascidas dentro de um prisma.
Sinto passos na varanda,
cadeiras de vime modornando à sesta,
sinto a festa
de aniversários com a alegria cintilando nas taças,
sinto o frouxo silêncio
escorrido de lua nas vidraças, sinto
de súbito a impossibilidade de juntar minhas sombras,
meus pertences,
vingado por completo deste mundo, ilhado neste reino,
porque sou o esvaído, o inefável,
e porque hoje é sábado
e eu não serei amanhã o domingo.

3

Quem se lembrará de mim quando o relógio parar
entre a noite e a madrugada?
Talvez ainda desarmem o gesto
das mãos caladas,
modelem o corpo com flores vivas
para compor no pensamento
a última elegia.
Quem olhará na direção do meu dia
sabendo que, afinal, quebrou-se a âncora
e estou perfeito?
Qual deles plantará sobre meu peito
um lençol de relva,
qual dentre todos ficará sozinho
até a consumação dos séculos?
O céu é um deserto de nuvens
às vezes minando estrelas.
Morre o vento no vale das estátuas
e o cipreste vela.

4

Confinado no meu reino, entrelaçado de raízes,
no tépido sabor do húmus, maduro de sementes,
o castanho úmido da terra entre os cabelos,
ouvirei no vento as vozes passeando
ao rés do chão?
Quem será capaz de velar, insone, minha ausência?
Quem há de me chamar com o clarim
do silêncio?
Quem virá bater na porta deste cofre
de mármore?


Cícero Acaiaba (1925-2009)


segunda-feira, 20 de abril de 2009

A Bacia



Os magos chegaram em silêncio. Não disseram uma só palavra. Vieram com suas túnicas pretas e na cabeça o chapéu cônico. Quatro deles seguraram os meus pés, um outro apertou o meu braço esquerdo, e mais um outro segurou o meu braço direito. O último deles agarrou firmemente a minha cabeça e o meu queixo. Nem precisava apertar tão forte, pois eu não pretendia mesmo gritar. Os magos foram carregando-me pela casa, em direção à porta dos fundos. Atravessaram a varanda e me levaram para o mato. O mato era muito longe. Tão distante de minha casa que a viagem durava muitos dias. Um pouco pelo ar, carregado nas costas dos magos, um pouco pela terra, arrastado por eles. Cheguei a um lugar ermo e solitário, desconhecido para mim. Fui solto no chão, como se solta um saco de batatas, desmerecidamente. Depois, eles sumiram. Permaneci no mesmo lugar. Nem me atrevi a tentar uma fuga. Os magos sabem de tudo. Eles sabem de coisas ocultas, sabem de tudo o que se passa no céu e na terra. Podem ler os pensamentos das pessoas. Por isso fiquei ali mesmo, deitado na grama, brincando com um raminho entre os dentes. Logo eles vieram. Reuniram-se à minha volta e declararam-me culpado. Um deles, o mais velho, leu a condenação em voz alta. E então, conduziram-me para um vale. Lá, eu fui jogado dentro de uma enorme e velha bacia oval. Dentro dela, boiavam centenas de fetos vivos e muitos embriões.

Foi assim que aconteceu...

sábado, 18 de abril de 2009

Cântico ao Amigo



Como se diamante fosse,
na palma da mão entre os cinco dedos,
devemos guardar o amigo sincero,
protegê-lo das intempéries, cuidar dele
como a mais divina das dádivas.

Amigo não é apenas o moinho
que colhe as nossas tempestades,
não é aquele que tem ombros constantes só
para suportarem o peso de nossas dúvidas,
quando o crepúsculo tinge-se de rubro.
Mas também não é aquele que se lembra só
quando há banquetes e honrarias
junto à multidão pelos méritos efêmeros.

Amigo é aquele que acalenta nossas lágrimas
e também o que sorri com nossas conquistas,
nas horas em que ainda é possível sorrir.

Amigo, diga a ele, tenho-te aqui junto comigo,
velado por este grato coração, porque sei:
tu és a bússola e o abrigo sereno,
tu és as ramas que surgem após os vendavais,
tu és o porto e os velames da nau que chega,
tu és a voz e o silêncio da voz.

Estou aqui para te dizer: que sim,
tu resplandeces pelo caminho,
soerguendo a lanterna da compreensão,
muito além do lodaçal do mundo,
onde se alastram a mentira e a hipocrisia.
Tendo-te comigo, tenho a riqueza do tempo.

E tu, que ainda te alheias pelas tarefas diárias,
não te esqueças de que, em algum lugar,
o teu amigo, após a carta enviada,
contempla o horizonte, esperando notícias tuas,
como os mineiros soterrados no túnel
oram pela mão que liberta,
como na choupana o esquecido ancião
anseia pelo aceno da filha distante,
tão iguais a lírios e jasmins
que aguardam na brisa o pólen.

Dá ao amigo o riso e o amparo,
o descanso e a prece, o agradecimento
e as tuas melhores horas.

Fiquemos atentos, enquanto for tempo:
De nada adianta darmos valor às pessoas
depois de, dolorosa e irrecuperavelmente,
perdidas de nós. Pois quem perde um amigo,
perde dentro de si uma parte de si mesmo.

"Cuidemos de nossos jardins..."
- escreveu Voltaire em Candide.

Cuidemos, portanto, de nossos jardins...!
enquanto pulsa ainda pelas sendas do mundo,
no meio de nós, o coração do amigo.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Miguel Torga: Vicente



Miguel Torga é um dos maiores poetas portugueses do século XX, ao lado de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e José Régio. Além de grande poeta, Torga continua na firme posição de um dos maiores contistas de toda a história literária lusitana.

Adolfo Correia da Rocha, nome verdadeiro de Miguel Torga, nasceu em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes, em 12 de agosto de 1907, e faleceu em Coimbra, em 17 de janeiro de 1995. Aos 13 anos, instalou-se na fazenda de um tio em Minas Gerais, Brasil. De volta a Portugal, aos 18 anos, estudou medicina em Coimbra e formou-se em 1933. Colaborou na revista Presença e esteve à frente de duas outras, Sinal e Manifesto.

Autor de uma obra poética vasta e profunda, encontrou no campo e nas aldeias portuguesas seu universo de poesia e de humanidade. Fez de sua pequena cidade uma província mítica, repleta de símbolos bíblicos.

Destacou-se também como biógrafo de si mesmo, através de uma linguagem exata e criativa, como se nota na série dos "Diários", em prosa e versos; e também no romance autobiográfico "A Criação do Mundo", de suma importância para compreensão do pensamento e do estilo do autor. O romance foi escrito no período de 1937 a 1981, publicado inicialmente em 5 livros separados e, em 1985, integralmente, destacando "O Quarto Dia da Criação do Mundo", cujas críticas ao regime franquista espanhol levaram-no à prisão em 1940.

“Vicente” é um de seus contos mais fascinantes, incluído na coletânea “Bichos”.

Vicente

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados pelo mesmo destino - , apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.

Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.

A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em leitos e condenados.

Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:

-Noé, onde está meu servo Vicente?

Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.

Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.

Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.

-Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...

Nada.

-Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no!

Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.

-Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?

-Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.

-Vicente fugiu...

-Fugiu?! Fugiu como?

-Fugiu... Voou...

Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.

Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.

Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.

-Noé, onde está o meu servo Vicente?

Acordado do desmaio poltrão, trêmulo e confuso, Noé tentou justificar-se.

-Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...

-Noé!...Noé!...

E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.

Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas - , dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.

Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?

Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?

Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravaram-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.

Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.

Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?

Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.

Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo. Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino. Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu" ! E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania. Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as conseqüências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.

Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.

Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.

Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.

Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.


Miguel Torga (1907-1995) 



segunda-feira, 13 de abril de 2009

Cântico ao Tempo



Oh, tempo que flui eternamente!
Colibri que farfalha na efemeridade do pólen.
Garça que transcende a pureza do branco.
Galáxias que adormecem e depois nascem
segmentadas no coração do átomo.
E corredores - túneis imensuráveis de Trevas!
E nebulosas – caramujos retorcidos em Luz.
Pulmão de Brahma! Olhos fechados de Vishnu!
Shiva das intempéries e das renovações !

Oh, dia que flui eternamente!
Oh, tempo, tempo
que é cauda e narina, que é ramo e semente,
que é riso e suspiro, que é ponto e círculo -
absolve-me em tua imparcialidade de fronteiras!
absorve-me em tua ausência de cristais!



(Constelação de Órion)
Image credit & copyright: 
Martin Mutti, Astronomical Image Data Archive 



quarta-feira, 8 de abril de 2009

O Tempo não é Tridimensional



É preciso viver intensamente
o presente como se presente fosse,
pois é sabedoria segurar entre os dedos
o momento único, mas sempre com um olhar
no passado e o outro olhar no futuro.

O passado nunca passa. Continua em nós.
Somos o resultado dos dias que se foram.
Porém a parte decadente do que passou
está nas frustrações mantidas e revividas.
Edificante mesmo só a experiência adquirida.

O futuro não está totalmente no porvir.
A cada momento germina-se no presente
o futuro que ainda não aconteceu. A noite
é a semente do dia. E o dia guarda a semente
da noite. Na morte já existe a gestação da vida.

Ato precipitado é destruir o futuro
pela inconsciência do passado.
Agir como se não houvesse amanhã
é o mesmo que negar a verdade
do plantio que ontem ocorreu em nós.

Agir precipitadamente é remexer nos nós
do tempo, desatá-los antes da liberação,
é mastigar a semente como se fruto fosse.
É como lançar grãos em terras frias de geada.
Da esterilidade boas colheitas não podem surgir.

No entanto, burlar a verdade do tempo
é cegar-se ao giro da ampulheta que se volta
inúmeras vezes mas nunca de maneira igual.
É preciso lançar fora as espigas velhas do ontem,
e amar profundamente na semente o reinício da vida.



segunda-feira, 6 de abril de 2009

Hermann Hesse: Caminhada



Muitos escritores sofreram com a guerra. Hermann Hesse foi um deles. Em 1914 foi acusado de traidor da pátria porque escreveu um artigo pedindo aos concidadãos que abraçassem a paz. Foi um ato ingênuo, principalmente em um momento daqueles, quando todos os alemães estavam embuídos de glória nacional, orgulhosos pelo revide à ofensiva política que sofrera a nação. Por esse ato pacífico Hesse perdeu os amigos e o respeito da maioria dos leitores. Como se não bastasse, a esposa enlouqueceu e ele próprio enfrentou grave crise nervosa. Então, extremamente pobre e sem qualquer recurso para a sobrevivência em um país assolado pela depressão e inflação do pós-guerra, preferiu se exilar. Escolheu o sul da Suiça. Instalou-se na aldeia de Montagnola, próxima a Lugano. Naqueles anos teve momentos de fome, e na maioria das vezes alimentava-se apenas de macarrão branco. Depois, no período da segunda guerra, já cidadão suiço, acolheu judeus e vítimas da perseguição nazista. Por isso suas obras foram proibidas e queimadas em praça pública pelos adeptos de Hitler. De forma que, mesmo distante, continuou sofrendo agrúrias por problemas políticos.

Assim que passou toda a loucura bélica, e a sua antiga pátria havia perdido a guerra pela segunda vez, Hesse foi cumulado de condecorações, confessavam que ele estivera certo desde a primeira vez por defender a paz. Em 1946, a Alemanha ofereceu-lhe a premiação máxima a um literato: o Prêmio Goethe. No mesmo ano a Suécia concedeu-lhe o Prêmio Nobel. Mas Hermann Hesse já estava sábio o suficiente para não sentir grande entusiasmo diante de todas essas honrarias. Já havia aprendido muito sobre a insensatez humana, que hoje cospe e apedreja, amanhã abraça e estende louros. Aceitou os dois importantes prêmios somente pelo respeito que tinha pela literatura alemã, mas no fundo do íntimo compreendia que a única Pátria que havia conquistado era o Reino atemporal do Espírito, que existe na alma somente daqueles que se encontram consigo mesmo.

Em 1919, na viagem de despedida, deixando para trás as terras suiças de cultura alemã, rumo ao cantão do sul próximo à Itália, Hermann Hesse escreveu em seu caderno notas descritivas das paisagens e os pensamentos que lhe surgiam no percurso a pé pelos caminhos. Esse pequeno livro, publicado em 1920, com o título de Wanderung (Caminhada), é uma das obras de Hesse que mais amo. Dela retirei os três textos abaixo. São palavras sinceras e comoventes, ainda mais se lembrarmos que foram escritas por um homem que havia perdido de uma única vez a esposa, os amigos, o lar e a pátria. E nem por isso perdeu a fé.

O Desfiladeiro

O vento sopra nesse pequeno e corajoso caminho. Já não existem árvores ou arbustos, só o musgo e a rocha crescem aqui. Por aqui ninguém tem nada para procurar, ninguém tem propriedade. Aqui no alto, o camponês não tem nem feno, nem madeira. É o longínquo que atrai, a saudade que queima, foi ela que entre as rochas formou esse pequeno caminho, entre pântano e neve, levando para outros vales, outras casas, outras línguas e outra gente.

Bem no alto do desfiladeiro, eu paro. O caminho aqui desce para os dois lados, a água corre para ambos os lados e o que aqui em cima se une, palmo a palmo, leva seu rumo para dois mundos. Essa pequena poça, aqui junto do meu pé, corre para o norte. Sua água desce a longínquos, frios oceanos, mas logo ali, esse pequeno resto de neve vai pingando para o sul. Sua água, descendo pelas costas da Ligúria ou do Adriático, chega até o mar que se delimita com a África. Mas, na verdade todas as águas do mundo se encontram e é no úmido vôo de uma nuvem que o Ártico e o Nilo se fundem. A bela e antiga parábola santifica meu instante. Também a nós, viajantes, qualquer caminho conduz para casa.

Meu olhar ainda tem opção: tanto o norte, como o sul, lhe pertencem, a cinquenta passos, porém, só me restará aberto o sul. Como respira cheio de segredos, com seus vales azulados! Como é forte o bater do meu coração a ele me entregando! É o prenúncio de lagos e de jardins, e o olor de vinho e amêndoa sobe até aqui em cima. Antigo e santo mito de saudade e peregrinação a Roma!

Recordações da juventude ressoam em mim como o repicar de sinos em vales distantes: o extâse da primeira viagem ao sul, o inspirar inebriante do generoso ar dos jardins às margens dos lagos azulados, ao entardecer espreitar até a longínqua pátria através dos picos nevados das montanhas que empalideciam! A primeira prece defronte às santas colunas da antiguidade! A primeira e fabulosa visão do mar espumante batendo-se contra as rochas escuras!

O êxtase já não sinto, nem mais o desejo de mostrar a todos os meus entes queridos esse maravilhoso desconhecido e toda minha felicidade. Em meu coração não habita mais a primavera, já é verão. É diferente o tom da saudação do estranho que chega até a mim, em meu peito o seu eco ressoa bem mais baixinho. Já não jogo o meu chapéu para o alto, nem canto nenhuma canção, mas sorrio, não só com a boca, mas com a alma, com os olhos, com todo o meu ser e ofereço para essa terra, cujo perfume sobe até mim, sentimentos bem diversos dos de outrora, mais sensíveis, mais perspicazes e experientes, porém mais calmos e mais agradecidos. Hoje, tudo isso me pertence muito mais do que antes, chega a mim com muito maior riqueza e colorido. A minha saudade já não falsifica as cores do desconhecido, meus olhos se satisfazem com aquilo que ali está, pois já aprenderam a ver e o mundo ficou mais belo do que outrora.

Sim, o mundo está mais belo e eu estou só, mas não sofro em ser só. Não desejo nada diferente. Estou disposto a deixar-me assar pelo sol, estou ansioso em amadurecer. Estou pronto para a morte, pronto para renascer, pois o mundo ficou mais belo.

O Lago, a Árvore e a Montanha

Era uma vez um lago azul sobre o qual, céu azul adentro, erguia-se verde e amarela uma árvore na primavera e além das ondulantes montanhas o céu descansava quieto.

Um viajante estava sentado ao pé da árvore e pétalas amarelas caíam-lhe sobre os ombros. Ele estava cansado e fechara seus olhos, a árvore amarela cobria-o de sonhos.

O viajante retornara à infância, era de novo um menino que ouvia, atrás de sua casa, a mãe a cantar e fitava uma borboleta amarela esvoaçar docemente, era de um amarelo alegre contra aquele céu azul. Então, começou a correr atrás dela pelos prados, pelo riacho até o lago onde em seu vôo alto passou por sobre a límpida água. Aí o menino voou atrás dela com um flutuar leve, fácil, novo e feliz dentro daquele espaço azul. O sol brilhava em suas asas e ele sobre o lago, acima das montanhas continuava a voar atrás do amarelo. Lá no alto, pousado numa nuvem, estava Deus rodeado pelos anjos cantando. Um dos anjos lembrava muito sua mãe. Ele segurava um regador, inclinando-o sobre um canteiro de tulipas, para que todos pudessem beber. Foi para junto dele que o menino-anjo voou, abraçando-o.

O viajante esfregara os olhos fechando-os novamente. O menino-anjo trazia uma tulipa vermelha e prendeu-a sobre o busto da mãe, uma outra colocou em seus cabelos, então voaram todos, anjos, borboletas, animais, pássaros e peixes que lá estavam. Quem o menino chamasse para junto de si vinha voando até suas mãos e ficava pertencendo-lhe, deixando acarinhar-se, interrogar e ser mandado embora.

O viajante despertara e pensava nos anjos. Ouvia o leve murmúrio das folhas da árvore e a calma e quieta vida subir e descer em douradas correntes pelo seu caule. A montanha o fitava e lá coberto num manto marrom, debruçara-se Deus e cantava. Suas canções era possível ouvir por todo lado cristalino do algo, eram singelas, e em surdina misturavam-se ao leve som do correr da seiva da árvore, ao sangue que corria em seu coração, às correntes douradas que o sonho fazia correr pelo seu ser.

Então ele mesmo principiara a cantar, devagar, longamente. Sua canção não tinha arte, era como o próprio ar, como o bater de ondas, soava como o zumbido de uma abelha, mas era a resposta para o Deus distante que cantava, para a seiva que corria pela árvore e para a canção que corria em suas veias.

Longamente, o viajante ficou assim a cantarolar, como o som da campânula ao vento da primavera e do gafanhoto entoando sua música na grama. Talvez tenha cantado toda uma hora ou todo um ano. Cantava divinamente, com singeleza. Cantava a borboleta, a mãe, a tulipa, o lago, seu sangue e a seiva da árvore.

Quando, distraído, seguiu seu caminho pela quente terra adentro, aos poucos foi se lembrando de sua meta, de seu nome, que era uma terça-feira e que lá, do outro lado, o trem corria para Milão. Agora ele só ouvia ainda um cantar que chegava de longe, do outro lado do lago, era Deus que em seu manto marrom continuava a cantar, mas pouco a pouco o som foi-se perdendo do seu alcance.

Casa Vermelha

Casa vermelha! De seu pequeno jardim e vinhedo exala todo o sul dos Alpes. Muitas vezes já passei por ti e fizeste tremer essa ânsia de andarilho em meu ser fazendo que se lembrasse do seu oposto. Uma vez mais brinco com as velhas melodias: ter uma pátria, uma pequena casa num verde jardim, silêncio ao redor e mais além a pequena aldeia. No quartinho a minha cama olharia para o amanhecer, a minha própria cama, para o sul olharia a minha mesa e lá eu penduraria a pequena e antiga Virgem Santa que comprara em Brescia em outra viagem.

Como o dia que fica entre a noite e o amanhecer, assim entre o sonho por uma pátria e essa ânsia de viajante, transcorre a minha vida. Talvez um dia eu chegue até o ponto quando a viagem e a distância se encontrarão em minha alma e então levarei em mim as suas imagens sem ter que realizá-las. Também talvez chegue o dia em que possuirei pátria em mim, então não mais terei que namorar casinhas vermelhas e jardins. Ter uma pátria dentro de si mesmo!

Como seria então outra a vida! Ela teria um epicentro da qual emanariam todas as forças.

Dessa forma, porém, a minha vida não possui epicentro algum, esvoaça trêmula entre diversos pólos e contrapolos. Saudade de um lar aqui, saudade de estar a caminho lá, uma ânsia por solidão e retiro aqui, ânsia por amor e comunidade lá! Já fui colecionador de livros e quadros e já me desfiz de tudo. Já cultivei o vício e a volúpia que me levou à castidade e ao ascetismo, cônscio venerei a vida como matéria o que me fez descobri-la só como uma função e poder amá-la.

Bem, mas minha função não é transformar-me, isso é a função do milagre, quem porém o procurar, tentar atrai-lo para junto de si, tentar forçá-lo, desse ele só fugirá. O meu propósito é ficar flutuando entre muitas tensões contraditórias, mas estar pronto para quando o milagre chegar a mim. Meu propósito é estar sempre insatisfeito e sofrer inquietação.

Casa vermelha dentro desse jardim verdejante! Eu já te vivi, não devo desejar viver-te de novo. Já tive pátria uma vez, já construí uma casa, medi tetos e paredes e fiz os caminhos pelo jardim. As paredes enfeitei com os meus próprios quadros. Todo homem possui esse instinto, feliz sou eu de já ter podido viver isso! Muitos dos meus desejos já se realizaram em minha vida: queria ser poeta e consegui, quis possuir uma casa e construi uma, quis ter mulher e filhos e os tive, quis falar aos homens e impressioná-los e consegui, mas cada desejo, rapidamente, transformara-se em saturação e ficar enfastiado eu nunca suportei. Compor poemas ficou para mim suspeito, a minha casa me tolhia, nenhuma meta alcançada era uma meta, todo caminho era um desvio e todo descanso despertava uma nova nostalgia.

Ainda terei que trilhar muitos desvios e muitas satisfações me decepcionarão, mas algum dia tudo terá um sentido, pois é lá onde os contrastes se apagam que está o Nirvana, dentro de mim porém ainda brilham as amadas estrelas da saudade.

Hermann Hesse (1877-1962)

(Ilustração: aquarela de H. Hesse)


Para quem se interessar pelo livro completo
Baixar aqui: Hesse.Caminhada.zip





quinta-feira, 2 de abril de 2009

Ralph Vaughan Williams: As Sinfonias Completas - Box Set



Existem vários registros das 9 sinfonias de Vaughan Williams. Menciono aqui somente aqueles que gravaram o ciclo completo.

As gravações de Sir Adrian Boult talvez sejam as que se mais aproximam da maneira como o próprio compositor gostava de regê-las, tendo, portanto, a concordância efetiva deste. Todos os registros sob a batuta desse genial maestro são recomendáveis. Mas há aqueles que consideram superior a leitura de Vernon Handley, que por sua vez obtivera a aprovação do próprio Boult. Opiniões e opiniões. Outros grandes maestros que registraram integralmente as sinfonias foram Sir Andrew Davis, Bryden Thomson e Richard Hickox. Fora do Reino Unido, o americano André Previn e o holandês Bernard Haitink também contribuíram para a gravação do ciclo.

Todos os citados são grandes condutores. Assim como Boult, outros da geração mais jovem são notáveis intérpretes. A escolha fica a cada ouvinte, conforme a preferência e a identificação.

A NAXOS, excelente gravadora que presta serviços inestimáveis à música clássica de todas as épocas, lançou este Box Set com 6 CDs. Gravam através dela regentes competentíssimos, muitos de renome internacional. Em outros casos, são jovens intrumentistas e cantores de muito talento, vencedores de concursos importantes, que iniciam a vida profissional.

Certamente que há interpretações com mais propriedade dessas sinfonias de Vaughan Williams, como as de Boult, Handley e Davis, que já são itens referenciais aos admiradores da obra do maior compositor britânico, porém, nesta oportunidade, disponibilizo um registro novo, de dois regentes menos conhecidos, mas de alto nível: Kees Bakels e Paul Daniel.

Aqui as Sinfonias de nos. 2, 3, 5, 6, 7, 8 e 9 ficam à cargo de Kees Bakels (nascido em 1945). Competência é o que não falta a esse regente holandês, que iniciou a carreira como violinista, e depois, durante 10 anos, foi o principal condutor da Orquestra Sinfônica de Bournemouth. Aprecio bastante a leitura de Bakels nestes registros da Naxos.

Já o britânico Paul Daniel, nascido em 1958, foi menino cantor do coro de Coventry Cathedral. Seguiu como diretor musical de alguns corais até assumir a English Northern Philharmonica. Pela Naxos, regeu as sinfonias nos. 1 e 4. Recriou com mérito a Sinfonia do Mar, acrescentando-lhe nova dinâmica e vitalidade.

Na Sinfonia Antártica Vaughan Williams utilizou antes de cada movimento um prelúdio evocativo com frases e versos retirados de diversas fontes, que são utilizadas em seu lugar original por alguns regentes; outros, omitem-nos. Neste caso, a gravadora preferiu colocá-los separadamente, deixando ao gosto do ouvinte, caso queira inseri-los no momento da audição.

Neste Box Set, além das sinfonias completas, aparecem também pelo menos duas outras obras-primas orquestrais do compositor: The Lark Ascending (romance para violino e orquestra) e Flos Campi (para viola, coro sem palavras e pequena orquestra), uma suíte deveras sensual que ilustra em sons as palavras do Cântico dos Cânticos de Salomão. E como brinde mais duas peças da primeira fase do músico: a Rapsódia de Norfolk No. 1, de delicioso colorido orquestral, inspirada diretamente no folclore dessa região inglesa, e a Abertura The Wasps, com sua contagiante verve rítmica.

A orquestra em todas as gravações é a ótima Bournemouth Symphony Orchestra, inglesa, fundada em 1893.

Download MP3 - Baixar:
Vaughan Williams - Completes Symphonies: Covers
VWilliams-CompleteSymphonies.Covers.zip
CD1: A Sea Symphony (No.1)
VWilliams.SymphNr1.Daniel.zip
CD2: London Symphony (No.2); The Wasps Overture
VWilliams.SymphNr2.Bakels.zip
CD3: Pastoral Symphony (No.3); Symphony No.6
VWilliams.SymphNrs3&6.Bakels.zip
CD4: Symphony No.4; Norfolk Rhapsody No.1; Flos Campi
VWilliams.SymphNr4.Daniel.zip
CD5: Symphonies Nos. 5 e 9
VWilliams.SymphNrs5&9.Bakels.zip
CD6: Sinfonia Antartica (No.7); Symphony No.8
VWilliams.SymphNrs7&8.Bakels.zip


Ralph Vaughan Williams (1872-1958)


As Sinfonias de Vaughan Williams



Falar sobre música britânica do século XX sem destacar Ralph Vaughan Williams é como falar de música clássica brasileira e omitir Heitor Villa-Lobos. Ambos são de importância fundamental na utilização e desenvolvimento do folclore no nacionalismo de suas respectivas nações.

Ao buscar no folclore e na Renascença de Tallis e Byrd o ponto de apoio de onde ergueu a sua sólida Obra, o compositor da Inglaterra, nascido na aldeia de Down Ampney, e com doutorado em música por Cambridge, foi um dos primeiros que realmente libertou a música inglesa da influência alemã. Semelhante ao que fizeram Janácek em terras tchecas, e Bartók e Kodály, na Hungria, Vaughan Williams e seu amigo de todas horas, Gustav Holst, percorreram os vilarejos mais remotos do Norfolk e outras regiões com o objetivo de compilar canções, danças e tradicionais hinos religiosos, que depois também serviram de inspiração para a obra de ambos. Enfim, foi um admirável trabalho de compilação desses dois homens eruditos em música: com trajes surrados, bastão, boné e botinas de andarilho surgiam nas aldeias mais agrestes da Inglaterra, a pedirem aos camponeses que cantassem a melodia que os pais lhes ensinaram, e do mesmo modo participavam de festas rurais, observando atentamente como as jovens camponesas dançavam, e concluíam a visita com participação nas pequenas igrejas, registrando os hinos que as senhoras entoavam. E com reverência a toda aquela pureza colhida na fonte, anotavam, recolhiam o folclore intacto do país.

Muitos conhecem Vaughan Williams através de duas peças que ficaram famosas no mundo todo: The Lark Ascending, um belo romance para violino e orquestra, que utiliza melodias folclóricas e, ao mesmo tempo, faz paráfrase ao canto da cotovia, ave comum nos campos ingleses; e Fantasia Tallis, uma recriação muito pessoal de um coral de Thomas Tallis, porém substituindo o coro por orquestra de cordas, tendo o tradicional quarteto (violinos, viola e violoncelo) como solista.

Essas duas obras mencionadas são pontos de referência para se ingressar na música de Vaughan Williams, pois o ouvinte tem chance de familiarizar com algumas das principais fontes de inspiração do compositor: folclore e hino da Renascença.

No entanto, não é a parte de sua obra mais substancial e importante. As sinfonias: eis a espinha dorsal deste grande compositor, talvez o maior que nasceu em terras britânicas. Ao menos é, incontestavelmente, o maior sinfonista inglês e um dos maiores de todo o século XX.

Semelhante a Beethoven, Schubert e Bruckner o compositor deixou nove sinfonias, cada uma com feição própria, estruturadas de tal maneira diferentes entre si que ficamos espantados quando as conhecemos pela primeira vez. Essa versátil individualidade chega a ser mais marcante do que as sinfonias de Sibelius. Vaughan Williams pertence àquela rara categoria dos ‘compositores filósofos’ que, a cada obra, querem recriar o íntimo e fragmentado universo com o intuito de descobri-lo novamente. A essa linhagem pertencem Bach, Beethoven e César Franck e, evidentemente, Mahler, o filósofo do entre-séculos.

Entretanto, para quem sente interesse em se aprofundar nesse campo da obra de Vaughan Williams, há um aviso: não espere encontrar aqui as deliciosas melodias folclóricas utilizadas em suas canções e música orquestral ligeira, que têm valor à parte. Em quase todas sinfonias há pouca menção ao folclore de seu país. Antes, são obras densas de conteúdo filosófico realista e pessimista, com questionamentos sobre os problemas existenciais da humanidade. O músico em questão era, antes de tudo, homem fiel ao seu tempo.

Uma das admiráveis qualidades na obra de Vaughan Williams é o equilíbrio: em um estilo sóbrio e de emoção deveras complexa, soube dosar o antigo e o novo, sem cair na monotonia ou na cacofonia meramente experimental. Antes mesmo de qualquer movimento neoclássico, cujos pioneiros foram Busoni, Satie e Roussel, consolidado por Stravinsky, Vaughan Williams já escrevia, como já foi dito, peças inspiradas na Renascença, sendo o exemplo mais feliz aquela magnífica Fantasia Tallis. Depois, também aderiu ao ‘modismo neoclássico', propriamente dito, compondo o Concerto Accademico, inspirado em Bach, o compositor que amava acima de todos. Utilizou em suas sinfonias técnicas de escrita "antigas” como a Fuga e a Passacaglia, transmutadas em sonoridades novas, às vezes atonais. O cromatismo do final da Sinfonia No. 6 é de uma magia desoladora, cujo efeito leva-nos a crer na fugacidade do tempo e no impalpável que há em todas as coisas. Mas não experimentou a politonalidade e o dodecafonismo. Vaughan Williams, por trás de sua intrincada teia de ‘filosofia musical’, não podia esconder que era um melodista nato. Em todas as obras nota-se uma elaboração cerebral à serviço da melodia, às vezes árdua, mas bela, sem dúvida, e nem sempre de assimilação fácil.

Esse compositor nascido em 1872, nos montes Cotswold, que são o coração da Inglaterra, e criado nas proximidades de Londres, aluno dedicado em Cambridge, erudito em história da música, peregrino dos campos e vilarejos, talvez seja o mais britânico de todos compositores britânicos. Apesar de ser considerado por muitos como um eclético, é o músico que mais assimilou e demonstrou em suas peças eruditas, ou de cunho popular ou acentuadamente folclóricas a essência do ‘espírito’ inglês, característica esta que perpassa, intima e fisicamente, a sonoridade de sua música. Pode ser observada nas grandes obras corais a estilização dos hinos anglicanos assim como nos metais da orquestra a pompa cerimonial de um país que sempre acreditou na monarquia. Alguns dizem: inglês até demais, tanto que o global de sua obra ainda encontra incompreensão em muitos países, fazendo com que seja pouco conhecido internacionalmente. A poderosa melancolia do romantismo tardio de Elgar e a produção lírica-teatral de Britten sempre serão mais digeríveis e aceitas onde quer que se apresentem, porque de certa forma são..., diríamos, mais 'universais'.

E, no entanto, Vaughan Williams, esse homem profundamente britânico, era cético diante da fama, não tinha ilusões quanto às honrarias mundanas, rejeitando a distinção máxima que um cidadão e artista de seu país poderia receber: a condecoração de ‘Sir’. Pois recusou a Ordem dos Cavaleiros e a indicação para assumir a alta posição de ‘Master of the King’s Musick’, dizendo que não queria ser ‘grande’ em nada, o que foi um espanto geral, pois estas honras foram bem aceitas por Elgar e depois por outros músicos como Bax e Walton. Mas Vaughan Williams preferiu abrir mão desse título de ‘Cavaleiro real’. Foi uma atitude de desprendimento semelhante a de Maurice Ravel que havia recusado na França a homenagem da Legião de Honra.

Outro fato curioso na vida desse grande músico era a sua 'agnose'. Em ato contínuo, durante muitos anos trabalhou na ópera Pilgrim’s Progress, cujo conteúdo litero-musical é essencialmente místico. Também mística é a Sinfonia No. 5, que foi construída com temas aproveitados da referida ópera. Essa grande obra é daquele tipo de comoção extática e sincera, uma religiosidade que dispensa templos. Como se não bastasse toda essa compenetração meditativa, ainda escreveu uma das mais belas Missas a capella do século XX. E mesmo assim era um ateu ou agnóstico assumido, o que não convencia muito.

As Sinfonias – Um Breve Comentário

O compositor começou a enumerar as suas sinfonias somente a partir da quarta, gerando um equívoco a muitos esteticistas, que se referiram às primeiras como poemas sinfônicos. Não é verdade. São sinfonias no sentido estrito e vasto da palavra.

A primeira, chamada de Uma Sinfonia do Mar (1910), sobre poemas de Walt Whitman, é uma sinfonia coral do início ao fim, mas seguindo a estrutura dos quatro movimentos clássicos, o que é uma raridade. É obra interessante e em alguns momentos chega a ser poderosa, mas trata-se ainda do esforço de um artista que está em busca de um estilo próprio.

A segunda, Sinfonia Londrina (1914), é obra programática, mas também com rigorosa estrutura. Ilustra de maneira cíclica um dia na vida da metrópole londrina: do nascer do sol até a madrugada do dia seguinte. Já é obra puramente orquestral que desperta o interesse, principalmente o belo movimento lento. A sinfonia termina da mesma forma que começa, com a suavidade das horas que antecedem a alvorada. Verifica-se facilmente nesta obra, embora tenha mais maturidade do que a anterior, que a qualidade dos movimentos é desigual, ainda há altos e baixos. O compositor está crescendo, nota-se. E na fase criativa seguinte, após o período do conhecimento da dor e da perda da ingenuidade política, o artista surgirá grande em sua arte mais profunda e humanista.

A terceira, a Sinfonia Pastoral, concluída em 1921, mas iniciada em terras francesas, durante a Primeira Guerra, já é obra definitiva. Bela e comovente, não há outra palavra mais exata para lhe atribuir. É quase toda em andamento lento, uma longa reflexão mística sobre a guerra e a paz. Nela não há pássaros nem florestas ou riachos, e sim as reminiscências da desolada planície européia, palco do conflito mundial, e da própria alma do compositor, que fora testemunha das recentes batalhas. Vaughan Williams serviu no exército como motorista de ambulância e nas horas vagas compunha para pequenos grupos instrumentais com o objetivo de entreter os soldados feridos. Na curta pausa entre fuzilaria e bombardeios anotava os fragmentos de sua canção íntima, ansioso pela paz. Dela surgiu a atmosfera aparentemente tranquila dessa nova sinfonia, onde não há danças nem canções folclóricas. Concluindo a obra uma soprano em vocálise entoa um hino de agradecimento. Enfim, faz-se necessária a re-edificação da esperança. Uma dança de júbilo é insinuada, mas não acontece. Do início ao fim é uma prece pela trégua e uma avaliação diante das ruínas, como alguém que olha a inocência idílica dos campos, mas com aquela certeza de que jamais serão como antes, como de fato o mundo nunca mais foi o mesmo após o tenebroso ano de 1914, quando irmãos ergueram a espada contra irmãos, e perderam o sentido as palavras Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Por isso, vivendo em outra época, diferente da de Beethoven, o compositor não permitiu que os camponeses dançassem no desfecho de sua Pastoral.

A Sinfonia No. 4 (1934), o oposto da anterior, é vertiginosamente dissonante e tumultuada nos três movimentos, com pausa apenas no meio, o melancólico Andante. A expressão é asperamene moderna, porém construída sob os moldes arquitetônicos de Beethoven, do qual ela se aproxima; intimamente da Quinta, pelo evocação da fatalidade do destino, e da Sétima, pelo alucinante ritmo de dança. Agitada, quase não dá trégua para fôlego, um labirinto constante de polifonia moderna. É obra genial. Não há outra palavra para distingui-la. Muitos admiradores do compositor sentiram nessa obra uma visão profética, como um presságio de que tempos mais tortuosos estavam para vir, e que o período de paz era só camuflagem de uma guerra adormecida e não concluída.

E a seguir, já em pleno conflito mundial, a belíssima No. 5 (1943), a mais profunda obra do músico, na humilde opinião deste que escreve. Em todos os sentidos diferente da anterior, e, em muitos aspectos, semelhante àquela Pastoral: a mesma perquirição místico-panteísta, a mesma suavidade ocultando profundezas. É construída com rigor clássico e com formas eruditas: utiliza o contraponto e termina com uma passacaglia. A fonte inspiradora foi o livro de John Bunyan The Pilgrim’s Progress, do qual o compositor também retirou o tema para sua melhor ópera com título homônimo, escrita e trabalhada durante 25 anos.

Depois dessa profunda meditação vem outra Sinfonia sobre a guerra: a No. 6 (1947), poderosa e elaboradíssima; a crítica diz: a obra máxima de Vaughan Williams, onde ele reúne todos os recursos aprendidos e utilizados nas sinfonias anteriores. Diferente das outras, termina com um movimento lento em forma de fuga. De conteúdo pessimista, alguns sentem nela a visão profética do futuro da Humanidade. A desolação cromática simboliza as ruínas que poderão surgir após uma abrangente terceira e última guerra mundial. Já outros comentaristas vêem nesse final uma apoteose aos versos shakespeareanos de The Tempest sobre a fugacidade da vida e da inconsistência dos sonhos. Se na 'Pastoral' parece surgir uma luz no final do túnel, aqui não há a mínima insinuação de júbilo. É de uma realidade crua que não oculta as experiências que a Europa e o mundo viveram naqueles tristes dias.

A seguir, outra grande obra, a Sinfonia Antartica (1952), também sem numeração. Aproveitando o material de sua própria trilha para o filme Scott of the Antartic, o compositor cria outra contemplação místico-filosofica, desta vez em um território natural e selvagem: as terras geladas do Pólo Norte. Entremeio às tempestades de neve sentimos a Natureza fria e a imensa solidão que ela evoca. Ao lado de Tapiola de Sibelius, Edgon Heath de Holst, Amazonas de Villa-Lobos, é uma das mais instigantes obras já criadas retratando uma região bravia.

As duas últimas sinfonias, a No. 8 (1955) e a No. 9 (1957), compreendidas como ‘canto do cisne’, são obras de um Vaughan Williams já octagenário que não transige e continua criando música complexa e fechada em si mesma, de difícil acesso. Considero-as peças árduas, que não podem ser desbravadas com muita facilidade, mas não sou insensato a ponto de não render-lhes o justo reconhecimento que merecem. São grandes obras que apenas nos aguardam para serem conhecidas em toda sua grandeza e mistério.

Os versos de The Tempest de Shakespeare, atribuído como fonte inspiradora do final da Sexta, são a meu ver o leitmotiv também das últimas três:

“As torres que se elevam para as nuvens,
os palácios altivos, as igrejas
majestosas, o próprio globo imenso
com tudo o que contém, hão de sumir-se
sem deixarem vestígios. Somos feitos
da matéria dos sonhos; nossa vida
pequenina é cercada pelo sono.”

A sólida estrutura, a amplitude do desenvolvimento temático e a profundidade criativa fazem de Vaughan Williams, sem dúvida alguma, um dos maiores sinfonistas do século XX. Pertence à mesma plêiade de Mahler, Sibelius, Prokofiev e Shostakovich.