domingo, 12 de fevereiro de 2012

Cícero Acaiaba: Deste Amor se Vive



O conto é de Cícero Acaiaba, grande poeta e escritor mineiro, famoso na década de 50 como novelista da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Faria aniversário nesse início de mês se não tivesse partido há 3 anos. No dia 9, ao acordar, lembrei-me do colega e amigo; procurei entre os seus diversos livros um texto com o intuito de homenageá-lo. É um costume antigo que tenho: nas datas de nascimento de autores que admiro, gosto de ler em voz alta algumas de suas obras.

Com quase 20 coletâneas de versos, Acaiaba é sobretudo poeta, mas deixou também 4 volumes de memórias "Meu Pé Direito", uma peça de teatro bastante aplaudida "Deus com Muita Raiva" e dois bons livros de ficção, contendo contos premiados em concursos, quase todos já apareceram em jornais e revistas: "O Homem com a Faca no Peito", publicado em 1989, e "Um Anjo no Labirinto", ainda inédito, do qual escolhi o comovente conto.    


 Deste Amor se Vive


Tinha só metade das pernas, até os joelhos. Vítima de um trágico acidente de estrada, desses que acontecem quase todos os dias. Era moço, muito moço. Mas tinha também dentro de si uma força, uma intensa vontade de viver. Para isso o sonho e a fantasia de sua poderosa imaginação davam-lhe esperança. Ficava, às tardes, horas e horas à janela de sua casa antiga, colonial, apreciando crianças e pessoas no lazer da praça ajardinada, um pouco distante. Um dia acordou com um vago pressentimento, algo que ia mudar sua vida monótona para sempre. Ela surgiu não sabe de onde, só a percebeu quando estava debaixo da janela, sorrindo, e era de uma beleza de tirar o fôlego. Nunca a vira andando nos arredores do bairro.

Foi amável com ele: “bom dia, como vai?” E ele indeciso: “vive-se conforme Deus quer.”  “ah, você é religioso, isso é muito bom!” No meio do silêncio pôde notar que os olhos dela eram azuis profundos, “acredito em Deus, mas também não sou fanático”, e ambos riram. Curioso, meio sem jeito, ele, enquanto batia com os dedos no parapeito, “você é daqui mesmo, ou...?” “não, não, de vez em quando venho até o bairro ver uns amigos, gosto de andar à toa pelos caminhos da cidade” “... os caminhos da cidade”, ele repetiu pensativo. Um breve silêncio, e não resistiu por mais tempo “você me conhece desde quando?” ela respondeu de maneira vaga “desde um certo tempo, simpatizei com seu modo solitário de ficar todas as tardes olhando o jardim da praça.”

Com esforço ajeitou os travesseiros na cadeira em que apoiava as pernas. Vendo que ele se calava e parecia inquieto, “espero não estar aborrecendo”, “oh, de jeito nenhum, ao contrário, é um prazer te conhecer”, “jura?”, “juro, você é uma garota... uma garota encantadora, aliás, quem não vê isso”. Ela não se perturbou, ficou toda alegre e contendo a emoção que lhe umedecia um pouco os olhos, prometeu vir agora todas as tardes conversar embaixo da janela com ele...

Silêncio. Os dois calados de repente. Ela fixou o profundo olhar azul no rosto pálido e desta vez não escondeu a emoção.

- Acredite. É um prazer conversar com você.

- De verdade mesmo?

- De verdade mesmo. Você... eu simpatizei com você, desde a primeira vez em que o vi... sonhando na janela.

- Sonhando... (ele sorri). É justamente isso que faço. Sonhar.

Houve uma longa pausa, ela voltou a cabeça para o jardim da praça, ele aproveitou para analisar melhor sua figura de jovem esbelta, cabelos castanho-claro, mais para o louro. Talhe perfeito, um pouco mais baixa que ele, altura mediana. Boca bem desenhada e dois seios firmes arredondando a blusa levíssima, de cambraia branca.

Falaram de repente, quase ao mesmo tempo:

- Mas quem sabe um dia...

E riram felizes. Era uma alegria espontânea, pura. Uma alegria de dois jovens que se encontram nos atalhos da existência e estão preparados para amar. Era a surpresa talvez de duas almas que se reconhecem em meio ao turbilhão de um mundo confuso, incompreensível. Eram dois meninos no jogo eterno das paixões primitivas e avassaladoras. Ou seria apenas aparência?

- Alguém falou de mim... contou a minha história? – ele apreensivo.

- Não. Por que? – ela natural.

- Então... você, de fato, aproximou-se daqui, de mim... desta janela... digamos... por mera curiosidade? – ele, um tanto desapontado.

- Não, não... – ela sincera. Vim porque simpatizei com seu jeito, já disse.

- Ah... simpatizou com ‘meu jeito’... – ele sorrindo.

- Com seu jeito, com seu rosto, com seu olhar de sonhador, com sua solidão... com você inteiro – ela completou.

- Você... tem namorado? – ele, com esforço.

Um pequeno silêncio. Num meio sorriso, ela respondeu:

- Por enquanto, não. Só amigos... colegas. Quer ser meu namorado?

- É melhor a gente não brincar com coisa séria... É melhor a gente ser bons amigos – ele inquieto.

- Tem razão. Assim, evitam-se futuros problemas, não é? Mas você não vai me proibir de vê-lo, vai?

- Oh, em absoluto... Venha quando quiser.

- Você ainda não me disse seu nome.

- Natália. E o seu?

- Celso.

Ela disse que tinha que ir embora. Ele esticou o braço e apertaram as mãos, como num pacto de firme amizade, a partir daquele momento. Ela afastou-se tranqüila, mas deixou alguém sofrendo na janela de um amor súbito, estranho e definitivo. Todas as tardes ela voltava para o bate-papo com o rapaz, de quem Natália conhecia a história trágica do acidente que o aleijara para sempre. Fazia aquilo para lhe dar um pouco de alegria, de paz, e quem sabe? esperança para continuar vivendo. Mas um dia, uma tarde belíssima de outono, teve que lhe contar que estava noiva e ia casar-se em dezembro. Foi como se o mundo tivesse desabado sobre os ombros de Celso, e esmagado cruelmente seu coração. Num esforço sobrehumano conseguiu dominar-se. Pediu que ela, depois da lua de mel, viesse apresentar-lhe o marido. Ela prometeu que sim. E afastou-se, perturbada, com a emoção a embaçar-lhe o céu dos olhos azuis. Enquanto ela desaparecia no jardim do parque, lágrimas silenciosas desciam pelo rosto envelhecido de Celso.

E ele repetia para si, atormentado, angustiado, inconformado, “deste amor se vive”, apesar de tudo -  “deste amor se vive”, o mundo pareceu-lhe escuro e inimigo, as cores estavam apagadas, cinzentas, os ruídos iam se dissolvendo num murmúrio longínquo, ameaçador, no grande céu as nuvens se juntavam prometendo para breve a mais terrível tempestade de todos os tempos, e do seu ninho desconhecido o pássaro do vento batia as imensas asas avançando lentamente contra a cidade encolhida e amedrontada, agarrando com as mãos o parapeito da janela, começou a chorar longamente, quietamente como um ser inútil e machucado, e de sua trêmula voz o nome da moça saía às vezes em palavras dilacerantes, o frio intenso, de indefinível gelo apanhou-lhe os restos das pernas e veio subindo, subindo, era uma onda que tudo absorve, que tudo engole, só lhe  restou o último pensamento, e foi – “deste amor também se morre.”


***
Cícero Acaiaba (1925-2009)


Pintura: 
Henri Gadbois - Sky Windows, óleo sobre tela, 1972


4 comentários:

Meimei Corrêa disse...

UM SONETO PARA CÍCERO
(Escrito em 19 de janeiro de 2002)

Feliz aniversário, meu amigo
Companheiro de muitas gerações.
Na família um laço muito antigo
Enfeita um grande cesto de emoções.

Parabéns não só pelo aniversário
Pelo dom de expressar teus sentimentos
Gerados em tão grande relicário
Do coração de tantos sofrimentos.

Não chores mais a tua triste infância
Pois muitas aves voam sem destino
Sem ter as mesmas chances que o menino

Cícero teve e não vê a importância
De ser na vida o grande Imperador
Do país ilusão, chamado Amor.

MEIMEI CORRÊA

Ailton Rocha disse...

Meimei, gostei de seu soneto! É belo. Primeiro, pela sinceridade que se faz presente desde o início; segundo, a lírica em 14 versos, estrutura preferida de Acaiaba no decorrer da existência, foi bem escolhida por você como homenagem. Os tercetos são bálsamo de ternura e alento, evocam a sua compreensão da vida de Cícero e demonstram a verdade interior da amizade. Fico feliz que ele tenha partido sabendo desses versos que você lhe dedicou.

Abraço do amigo Ailton

Suzane Lima disse...

O conto com um dos desfechos mais emocionantes que já li. Obrigada por compartilhá-lo Ailton! Beijos!

Ana Coeli Ribeiro disse...

Belo e bem triste no final,mas saber de sua leitura dos poemas para homenagear seus amigos é muito tocante. Lindo gesto!
Luz
Ana