segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Cícero Acaiaba: Fronteira do Reino
Refração
Há uma fronteira que não se deve transpor
fica entre a névoa e o reinado de aquário
sua porta é espelho convexo
quem olha pra trás vira estátua de pedra
quem olha pra frente
seu lúdico reflexo.
Os que ousaram espreitar as mãos
entre as frinchas fluidas
e tatearam o palpitante ossário
decifram o silêncio
dos suicidas.
Há uma fronteira
que divide o homem em partes iguais:
depois do primeiro passo
não poderá retroceder jamais.
Jardim Inefável
No muro, um simples traço. É só tocá-lo
e o jardim submerge por encanto.
Noite densa de luzes afogadas,
profundamente abismo em que se esconde
no próprio enigma. Do lado esquerdo,
um rio de asas trêmulas, fugindo
imóvel. À direita, estátuas olham
para o silêncio, onde germina o tempo.
E nada existe além do grande medo,
nem sequer a lembrança de uma estrela
boiando as sombras do jardim perdido.
O muro cada vez fica mais longe,
até que resta apenas o sussurro
das nuvens de outro céu amanhecendo.
Música Invisível
No fundo da alameda a água que lembra:
reflexos tão velhos esgarçados
e um pássaro no vôo interrompido.
A tarde sopra névoas de silêncio,
e tudo fica imóvel no jardim.
Apenas uma estátua quase morta
sorri, pra naufragar depois no sonho.
A sombra escorre calma na alameda,
subitamente o vento passa, o instante
das pétalas e folhas desfiarem
a surdina do eterno encantamento.
Mas os grilos, por mágica da noite,
começam a quebrar em sons de prata
o invisível espelho dessa música.
O Mito
Andei por tanto tempo à procura do mito,
entre escuros caminhos, e veredas frias.
Da frágil relva ao sólido granito
varando noites, viajando dias,
busquei a essência misteriosa do infinito.
Porém, por todo o reino, as órbitas vazias
das clareiras calavam como um grito,
cujo eco perdeu-se em longes serranias.
Exausto, dominando a custo meu cansaço,
estrelas a orvalharem todo o espaço,
achei o sono em doce alfombra.
E em sonho eu vi então, nitidamente,
o mito me fitando frente a frente
com seu rosto de sombra.
Espelho
O espelho sorve aos poucos outra imagem,
e deixa a sombra cega no seu ermo
de trastes cismativos, de roupagem
enrugada e poeira fria. O termo
da planície é o enigma da miragem:
olhos de estátua sob um sono enfermo,
e mãos caladas lendo a tatuagem
na areia da alma onde há fluir de aragem.
Espelho a dentro mil lembranças agem,
vozes esgueiram calmas, de repente
cabelos naufragando à luz inquieta.
O trêmulo reflexo da celagem
fere por fim interminavelmente
o coração numa invisível seta.
A Semente da Noite
Da semente da noite nasce o sono:
flor de lótus perfuma com silêncio
os olhos que morreram sem amor
e se orvalharam de névoa e escuridão.
Tristes esperam, juntos e sozinhos,
a luz da madrugada há um milênio,
e ouvem girar o mundo em derredor,
imóveis, esquecidos sob o chão.
Até o último gesto, apelo inútil,
talvez saudoso estigma de adeus,
secou nos ossos da vazia mão.
O tempo inexorável já transforma,
- e para sempre, asperamente fria –
em pedra o que antes era coração.
Solidão/Limite
Aqui é o teu limite: não prossigas.
Baste à tua volúpia o sonho raro
de tecer a distância. Ou a infância
aprisionar em castelos de areia.
A fronteira se perde em vago oceano,
e os veleiros de um mundo singram veias
de ácido e lodo. Fica no teu reino,
aqui é teu momento de repouso.
Não mais o medo desta solidão,
nem silvos de vinganças rastejantes:
talvez a morte de nascer apenas.
Ultrapassar a linha deste mapa
é o mesmo que gritar na pedra sem
que te responda o eco de ninguém.
(poemas e sonetos selecionados de
"Fronteira do Reino", 1988, Ed. João Scortecci)
Cícero Acaiaba (1925-2009)
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