terça-feira, 20 de outubro de 2009

Voltaire: Os Dois Consolados


O grande filósofo Citófilo dizia certa vez a uma mulher desolada, e que tinha razões de sobra para isso:

“A rainha da Inglaterra, filha do grande Henrique IV, foi tão infeliz quanto a senhora: expulsaram-na de seus domínios: esteve prestes a naufragar numa tempestade; assistiu à morte de seu real esposo, no cadafalso.”

“Lamento-a” – disse a dama; e pôs-se a chorar seus próprios infortúnios.

“Mas lembre-se de Maria Stuart” – insistiu Citófilo. “Ela amava muito honestamente a um bravo músico que tinha uma bela voz de baixo. O marido matou-lhe o músico à vista dela; e depois a sua boa amiga e parenta , a Rainha Elizabeth, que se dizia virgem, mandou cortar-lhe o pescoço num cadafalso forrado de negro, depois de a ter conservado prisioneira durante dezoito anos.”

“Cruel destino” – respondeu a dama; e tornou a abismar-se na sua melancolia.

“E com certeza já ouviu falar” – continuou o consolador – “na bela Joana de Nápoles, aquela que foi presa e estrangulada?”

“Lembro-me confusamente” – respondeu a aflita senhora.

“Pois bem, devo então contar-lhe o que aconteceu a uma outra grande princesa, a quem ensinei filosofia. Tinha ela um namorado, como acontece a todas as grandes e belas princesas. Uma vez o pai entrou-lhe no quarto e ali surpreendeu o amante, que tinha as faces em brasa e cujo olhar fulgurava como um diamante; a dama estava também muito animada de cores. A cara do jovem desagradou de tal maneira ao pai, que este lhe aplicou o mais formidável bofetão de que há memória na sua província. O amante pegou um par de tenazes e rachou a cabeça do sogro, que só agora se está curando, e ainda tem as cicatrizes do ferimento. A amante, desesperada, saltou pela janela e destroncou o pé; de maneira que hoje coxeia visivelmente, embora tenha em compensação um corpo muito bonito. O amante foi condenado à morte por haver quebrado a cabeça de tão alto príncipe. Imagine o estado em que não estava a princesa quando levavam o amante para a forca. Visitei-a durante muito tempo, enquanto ela se achava na prisão: só me falava das suas desgraças.”

“Por que não quer então que eu pense nas minhas?” – retrucou a dama.

“É porque não deve” – replicou o filósofo. “Pois, havendo tantas e tão grandes damas com tamanhas desgraças, não lhe fica bem desesperar-se. Pense em Hécuba, pense em Níobe.”

“Ah !” – exclamou a dama. “Se eu tivesse vivido no tempo destas últimas, ou no de tantas belas princesas, e, para as consolar, lhes contasse o senhor as minhas desgraças, acha que elas lhe dariam ouvidos?”

No dia seguinte, o filósofo perdeu o seu filho único, e esteve a ponto de morrer de dor. A dama organizou então uma lista de todos os reis que haviam perdido os filhos e levou-a ao filósofo. Este a leu, achou-a bastante exata, e nem por isso chorou menos.

Três meses depois tornaram a encontrar-se, e muito se espantaram de achar-se mais alegres. E mandaram erigir uma bela estátua ao tempo, com a seguinte inscrição:

ÀQUELE QUE CONSOLA...




Voltaire
(pseudônimo de François-Marie Arouet)
(1694-1778)


Um comentário:

Anônimo disse...

Olá, lindo conto, cheio de ensinamentos...
Muita luz
Ana coeli