terça-feira, 1 de outubro de 2013

Beethoven, o Prometheu das Artes



Mário de Andrade, em sua obsessão por nacionalismo, idealizou uma modificação na forma brasileira de escrever, e tentou criar uma 'gramatiquinha'. Não conseguiu. Não deu certo. Ninguém quis segui-lo. E por isso, felizmente, não conseguiu empobrecer a língua. Não exageremos os méritos de Sr. Mário de Andrade. Como poeta foi um experimentador; acertou sim, vez ou outra. E, sem dúvida, foi ficcionista de valor, deixando-nos, além de outras, o Macunaíma, uma narrativa burlesca que o autor chamou de ‘rapsódia’, nela acusando o povo brasileiro de não ter personalidade. Nisso acertou também. É sua obra mais lida e comentada. Vários de seus contos também merecem ser admirados pela trama e estrutura bem feitas. Mas a glória nacional deste autor reside em sua prosa ensaística. Por vezes estudando o folclore, ou tecendo críticas em todas as áreas da arte, literatura, cinema e... música, tornou-se uma importante figura da cultura brasileira. Mas não podemos também exagerar o seu legado histórico. A Semana de Arte Moderna eclodiria de qualquer forma, com ou sem Mário de Andrade. Era algo que já estava no ar.

De forma que o ensaísta escreveu também uma História da Música, tentando a todo instante ser original, e sempre fazendo questão de utilizar a sua gramática de simplificação. Tirando alguns disparates e pontos de vista muito particulares, a obra de Sr. Mário de Andrade Compêndio da História da Música tem a sua importância e continua sendo uma obra bastante lida. Mas está repleta de comentários estranhos, ‘non sense’, irreais, assim como o referido neste trecho sobre Beethoven:

“(...) e sabemos que (Beethoven) compunha às vezes com dificuldade extrema. E esta dificuldade não provinha da ânsia de perfeição musical, porém de preocupações intelectuais, de ordem literária, de ordem especialmente filosófica, que nada tem a ver com a Música. (...) deixou páginas literárias geniais pela grandeza e elevação das ideas, força, profundeza de expressão. Entre estas o Testamento de Heiligenstadt é um monumento imortal.”

Ora, se o historiador se baseia nesse documento para atestar as condições literárias de Beethoven por certo está muito equivocado. Nada há de arte literária genial no Testamento, e menos ainda na Carta à Amada Imortal, que é a declaração de amor mais caótica de que se tem notícia. Amamos essa carta porque ela nos diz que Beethoven, o solitário “Luiz”, após o desprezo de tantas, ao menos uma vez foi amado por uma mulher, ficando esta na obscuridade porque o amado quis ocultá-la ao mundo, por razões pessoais. Hoje sabe-se que era Antonie Brentano, uma grande mulher, de alma e posição nobres, e amiga de Beethoven, porém casada. Amou o músico, verdadeiramente, e por ele foi amada, sendo, entretanto, um amor que não se consumou por motivos ainda misteriosos. Semelhante ao Testamento de Heiligenstadt, a carta possui valor histórico, e nada mais. Não há um grande poeta submerso nesses textos. São muito parecidos com os escritos e os desabafos de um homem comum que sofre por amor. O que ambos os documentos destacam é que, a partir deles, o músico haveria de iniciar a peregrinação ao interior de suas obras verdadeiramente imortais no campo da música. Tais obras surgiram só após muitos tormentos. Sem dúvida, a expressão artística em Beethoven jamais se mostrou com a mesma facilidade como ocorrera a Haydn ou a Mozart. O Testamento de 1802 e a Carta de 1812 são uma espécie de partes de uma autobiografia, que registram as transições do músico: da primeira para a segunda fase, chamada de ‘Heróica’, e desta para a última fase. Cada um dos documentos fecha um período para iniciar outro. No entanto, possuem inestimável valor histórico, não literário.

Eis o que ocorre no Testamento de Heiligenstadt: nele relata-se o combate de um artista consigo mesmo para se manter vivo dentro dos requisitos de sua arte: a perfeição auditiva. E tal desabafo comove-nos extremamente e também nos glorifica, pois é a capacidade que tem o homem de renascer das próprias cinzas. Ali, Beethoven repete o mito de Prometheu e pressente a sua própria jornada de silêncio e solidão, muito semelhante àquele outro castigo imposto pelos deuses: um abutre devoraria o seu coração incessantemente, atado a uma montanha, sofrendo a dilaceração pela surdez, distante, cada vez mais, do convívio de outros homens. Eis o símbolo de Prometheu tão bem vivenciado em Beethoven. Porque, ao ver tantos e tantos adormecidos pela surdez e pela cegueira, imersos na banalidade dos valores burgueses, o músico, à medida que rouba a labareda dos deuses, acordando os homens com a claridade de sua música, perde-se do próprio brilho. Sente-o mas não pode apreciá-lo como os outros. Aí estão o fogo e o brilho de sua música – o despertar. Eis o verdadeiro significado das batidas retumbantes no início de suas sinfonias: quase todas iniciam semelhantes ao batido seco de um martelo ou de um gongo a soar, sempre querendo dizer: “Acordem ! Ergam a cabeça ! O mundo não é feito somente de comprimento e largura. Há ainda uma outra dimensão! Há uma altura e há uma profundidade em tudo! Ergam-se, aplumem a cabeça e os ouvidos! Enxerguem e ouçam as maravilhas que existem ao redor, na beleza que pode existir na vida. Cresçam como homens! E serão deuses também!” Assim é o início. E o que vem, logo depois, do interior dessa música, aqueles que a conhecem, sabem.

Todas as grandes obras de Beethoven são uma luta entre matéria e espírito, entre sombra e luz. O combate que se trava com o destino em toda Sinfonia No. 5 é trágico, mas no final surge do escuro túnel a esperança, seguida de júbilo. É a música mais esotérica escrita até hoje. É a arte mais profunda no que diz respeito à transitoriedade dos elementos diante da perenidade e da essência primordial da alma.

Apesar do elogio de Sr. Mário de Andrade ao compositor, sinto camuflado nas entrelinhas de todo texto um tom irônico, aquele tipo de deboche do nacionalista extremado apenas contido em expressão sutil. “(...) Porém, estou convencido que (Beethoven) poderia ser tão grande ou maior poeta, filósofo ou, quem sabe, imperador.”

Equivocara-se Mário de Andrade dizendo que Beethoven poderia ter sido um poeta ou filósofo, se quisesse. Quem disse que não o foi? Pois o compositor de Bonn recebeu pela música uma missão muito maior: ser tudo isso e mais um pouco. Filósofo do trágico e do júbilo, arquiteto gótico de invisíveis catedrais, ou, então, ‘poeta dos sons’, como ele mesmo se chamava. Mas não criou a sua obra imortal do nada; e nem poderia. Aqui está um de seus méritos e, ao mesmo tempo, doloroso sacrifício criativo. Foi lenta a gestação de quase todas sinfonias, concertos, sonatas e quartetos. E hoje permanecem para comprovarmos a perfeição: não precisam de retoques ou revisão, não há falhas, principalmente nas obras criadas no período ‘heróico’. Os defeitos que querem encontrar nas obras da última fase são apenas a incompreensão de nossa época diante de um gênio que já vivia com os olhos em tempos distantemente futuros.

Quase oito anos para dar-se por completa a Quinta Sinfonia! O mesmo tempo para a Sinfonia Pastoral. Quase vinte para surgir a Nona! Mais de uma década para ficar terminada a Missa Solemnis! Vinham-se-lhe, aos poucos, melodia, compasso e cadência, estrutura e conteúdo, orquestração e vozes e, quando surgiam, lapidadas e puras, pela orquestra ou pelo piano, pelo conjunto de câmara ou coral a ele soavam como um alívio, como mais uma pedra angular defronte ao templo de sua travessia, a do artista sacrificado pela dor de não perceber exatamente o que criava; e dor humana de não ouvir aplausos e gratidões. E, ainda assim, o resultado de tudo isso nas obras não é grito raivoso, não é lamúria, não é estertor. É cântico. É água. É luz. E assim continuará: canção e luminosidade, enquanto brilhar no mundo algum archote de civilização.

Por fim, o escritor Mário de Andrade acertou. Beethoven poderia ter sido imperador... Mas quem disse que pela música ele não o foi? E, acaso, não continua ele pertencendo à uma estirpe bem mais gloriosa do que a de qualquer Bonaparte?

Com humildade, reverencio Beethoven e a grandiosa obra que nos legou. Continua sendo para mim o verdadeiro Prometheu da Arte. Sim, compadecido da escuridão humana, roubou a luz dos deuses para entregá-la aos homens através da mais profunda música escrita até hoje. 

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Abaixo, o monumento a Beethoven na cidade natal, Bonn. 
O semblante do gênio permanece como foi em vida, 
com o olhar altivo, abstraído em longínquos horizontes.

Ludwig van Beethoven (1770-1827)



Beethoven em retrato de 1823, do pintor Waldmüller. Completamente surdo, o músico criava a 'Nona Sinfonia', cujo final, sobre poema 'Ode à Alegria' de Schiller, tornou-se o Hino de toda a Europa.

E, ao lado, o retrato de Toni Brentano, a verdadeira Amada Imortal, a única mulher que amou Beethoven e para quem ele escreveu a famosa Carta. Após um século e meio do episódio, por fim o mistério foi desvendado pelo admirável musicólogo americano Maynard Solomon, cuja árdua investigação, em 1977, resultou em provas tão convincentes que não deixam mais dúvidas sobre a identidade de Brentano, tanto tempo oculta.



3 comentários:

Tais disse...

Olá Ailton !
Gostaria que soubesse que seu texto me emocionou profundamente..
Belíssima homenagem ao eterno Beethoven !
Pude realmente sentir tuas palavras..
Grande abraço;

Tais Rocha

Ailton Rocha disse...

Tais,

grato pela sua presença e sensibilidade.
Noto que a música de Beethoven também amplia o sentido de sua vida.

Abraço
Ailton

Emerson disse...

Prezado Ailton, sou de Marília-SP e Beethoven é meu compositor favorito. Grande Prometeu da Arte, como mencionou e supremo desafiador do Destino.

Belíssimo texto. Viva Beethoven, para sempre!