quarta-feira, 11 de março de 2009

A Lenda do Velho Leopoldo



Leopoldo estava na faixa dos quarenta anos. Já não tinha ao seu redor os amigos de outrora. Por isso vivia um tanto recluso com o seu passatempo predileto: apanhava borboletas no campo e depois as fechava em uma sala provida de clarabóia. Nessa sala, onde não falta iluminação natural, Leopoldo também cultivava em pequenas estufas as suas flores pálidas. Mas do que ele mais gostava era mesmo ficar diante da divisória de vidro e observar as borboletas em seus vôos multicores. Eram a única alegria de seus dias.

Leopoldo era um homem sério e amargo, um solteirão desencantado e muitos conheciam a sua história: Algum tempo atrás, na juventude, fora um sonhador, apaixonado pela vida e, após uma incessante procura da mulher ideal, ele foi encontrá-la, inesperadamente, em Nice, uma jovenzinha adolescente. E passou a amá-la acima de todas as mulheres. Admirava as virtudes de Nice, a sua alma já em caminhos tão evoluídos e também a sua impressionante cultura musical: Nice era sublime intérprete de Beethoven, ao piano. As duas almas se encontraram em um forte abraço depois de uma separação de séculos. Ambos sentiam isso. Mas no período em que viviam a felicidade em toda a plenitude, Nice veio a falecer, deixando no coração de Leopoldo o vazio abismal da saudade.

Nos primeiros anos após o ocorrido, Leopoldo ainda tentou despertar novamente para a vida amorosa, mas concluiu, a princípio sem resignação, que o mais sublime de sua passagem por este mundo já havia sido compartilhado com Nice. E recolheu-se ao casulo das lembranças, esperando uma transmutação que ele sabia ser impossível. Ele pensava: As intensas alegrias e as horas felizes nos custam um preço demasiadamente elevado, o qual pagamos quase sempre com a dor por tê-las vivido em tempo tão breve. E dizia aos amigos: Realmente, não há como negar. É uma comédia bastante amarga esta vil existência. As risadas são curtas e não valem tanto sofrimento, principalmente aquele vazio no tablado depois do ato final. Falava assim, sugando o fel da saliva. Logo ria e citava as palavras de Macbeth: “A vida é uma história contado por idiotas, cheia de fúria e muita barulheira, que nada significa.”

Numa noite, na véspera de seu aniversário, data em que completaria cinqüenta anos, Leopoldo deitou-se apenas para cumprir o ritual do cotidiano, dessa vez lembrando-se de Hamlet: “dormir... nada mais”. Pois dormiu e sonhou. E no sonho, pela primeira vez após longos anos, reencontrou a claridade de suas manhãs primaveris.

Naquele instante, Nice aproximava-se da porta frontal. Tinha os mesmos cabelos loiros em tranças. Estava vestida com uma camisa muito branca e calça índigo levemente puída – os trajes simples que ela costumava usar. E trazia, dependurada no ombro, uma bolsa azul-celeste de aparência singela. Encostou-se na parede e pela porta entreaberta era possível ver a sua face iluminada pela manhã. Permaneceu em silêncio, olhando todas as coisas. Apenas a brisa ondulava suas tranças sobre os ombros. Então, disse:

“Leopoldo, eu vim conhecer... a sua cidade natal.”

E ele extasiado, perplexo, balbuciou:

“Mas, Nice, você? Então, nada daquilo aconteceu? Acredita que sonhei que você tinha...”

Ela sorriu e com o dedo selou os lábios:

“Oh! Não faça isso. Não macule o silêncio desse momento.”

O olhar de Leopoldo umedeceu-se. Uma pequena lágrima, tanto tempo submersa nas profundezas da memória, rolou por aquele rosto transfigurado pela saudade.

Nice segurou-lhe a mão e disse com as palavras do pensamento, pois é bem verdade que seus lábios não se moviam:

“Oh! Não. Morrer... acabar-se... o que você está pensando não existe. Não acontece assim. Observe, amanhã, ao abrir os olhos, como as pessoas de todos os lugares correm tão apressadas para lá e para cá. Na verdade, sonham apenas. Sonâmbulas, procuram tantos caminhos, tantas respostas. Ah! se elas soubessem... Quando você acordar, no dia em que você despertar, compreenderá tudo. Em mim não há mais o véu do sono. Eu vim só cumprir o nosso trato, Leopoldo. Estou aqui só para lhe dizer... que não há fim algum, que é mesmo da forma que imaginávamos: A vida, só ela existe.”

Ao amanhecer, Leopoldo despertou, abrindo vagarosamente as pálpebras. Observou por alguns minutos o seu aposento de descanso. Apalpou a parede ao seu lado, deu um tapinha no concreto, e sorriu.

Depois desse dia os amigos não o viram mais imerso na costumeira melancolia. Ele caminhava pelas ruas com o olhar sereno e tinha um riso apenas insinuado. Muitos o achavam esquisito e distraído. Outros preferiam Leopoldo como era antes, ainda que sério e casmurro. Mas alguns não tinham dúvida de que ele havia ensandecido. No entanto, o certo é que ele tinha ficado mais jovial, quase infantil. Quando encontrava alguma pessoa em desespero, com a alma ferida pela desilusão, ele colocava-lhe a mão no ombro e dizia: “Tenha paciência. Vai passar... tudo, tudo neste mundo passa.” Desde então, começou a esvaziar o bolso para as criancinhas desamparadas, começou a abrir as portas de sua casa aos que sentem frio e sempre que podia lavava as feridas daqueles que sofrem.

Às vezes Leopoldo cantava, e olhava as pessoas com o mesmo amor e compaixão: os velhos... as crianças... os mocinhos e as mocinhas que perdidamente se apaixonam... Contemplava os senhores industriais tão preocupados com a cotação na Bolsa... Observava-os com um sorriso nos lábios: como são semelhantes tanto os sonhadores como os pragmáticos. Compreendia que todos viviam os seus brinquedos febris e sobreviviam graças ao jogo das paixões e das ilusões. Era assim que funcionavam todos os ciclos, todos os caminhos. E pensava: o mais perfeito milagre da existência é a rosa mística que pode florescer na alma, abrindo-se em múltiplas pétalas. Pois todos, sem exceção, guardam dentro de si o Reino Prometido.

E Leopoldo começou a compreender a fragilidade das formas: tudo sobre a Terra obedecia a lei do efêmero. Por isso não sofria vendo suas mãos que enrugavam. As macieiras também tinham as suas rugas e abriam os braços para o céu. Os ombros curvavam-se da mesma maneira que os velhos rochedos também se inclinam de volta ao chão de onde surgiram. Por isso Leopoldo consolava aqueles que não compreendiam essas verdades: ouvia calmamente o belo atleta que perdia as forças; abria o coração para a linda atriz que envelhecia, que observava o crepúsculo, sentindo medo da solidão. E olhava da mesma forma tanto as prostitutas, os facínoras, os mendigos, os desconsolados, assim como os santos, os sábios e os gênios, e também os privilegiados e os sorridentes, tanto os pobres como os ricos... tantos os que acertam como os que erram... Compreendia que a solidão não era motivo de angústia nem de medo, e sim uma boa companheira que consola e ensina. E, por fim, compreendeu que a morte é uma mão bendita que nos guia para novos caminhos, quando é chegada a hora, que nos conduz para outros lugares, onde podemos enxergar as paisagens nítidas, verdadeiramente reais.

Durante muitos anos ele viveu assim.

Em uma bela manhã de setembro, como diz a lenda, o velho Leopoldo acordou e levantou-se da cama. Notou que podia abrir, erguer, esticar, movimentar os braços. Escreveu um bilhete para a irmã e mais outro para um amigo. Foi ao viveiro de vidro, abriu a pequena porta e a janela maior da outra sala, sorrindo por ver a silenciosa miríade espalhar-se no céu.

Depois ficou de pé na beira do terraço. Sentia o movimento das nuvens brancas acima dos olhos. Abaixo estavam as escarpas do penhasco. E com os braços abertos girou o corpo, acompanhando o vôo das múltiplas cores... as borboletas.


***

(publicado em “Nove Estórias de Amor e Vida”, 1996, pelas editoras Scortecci e Alba, junto com os colegas escritores Aníbal Albuquerque e Oreste Regispani. Lançamento na XIV Bienal Internacional do Livro em São Paulo)

Nenhum comentário: