sábado, 7 de março de 2009

Johann Wolfgang von Goethe: A Lenda da Ferradura



Este admirável poema, talvez colhido do cancioneiro popular, foi escrito por Goethe, um dos maiores poetas da literatura mundial. Depois de Leonardo da Vinci, Johann Wolfgang von Goethe é o gênio mais completo de que se tem notícia, pois envolveu-se com quase todas as áreas do conhecimento humano. É fato indiscutível, Goethe e Schiller são os maiores nomes da literatura alemã, assim como Dante é da italiana, Shakespeare da inglesa, Cervantes da espanhola, Camões da portuguesa. Goethe escreveu poemas, peças de teatro, romances, novelas, diários, autobiografias e ensaios, destacando-se genialmente em todos os gêneros. Foi também pintor e ator de talento. Estudioso de Ciências Naturais, foi o responsável pela descoberta de que o crânio é o desenvolvimento da última vértebra da coluna que sustenta o corpo humano; em Ótica trabalhou vários anos na obra "Teoria das Cores", bastante controversa, por sinal; em Botânica, deixou-nos em versos a "Metamorfose das Plantas", e outros tratados científicos. Não é simples escrever sobre um homem assim. Em outra oportunidade faço um breve comentário de sua vida e obra. Agora, porém, a intenção é mostrar esta "Lenda da Ferradura", como curiosidade, pois é diferente de tudo que o erudito autor escreveu. É uma parábola despretenciosa, leve, divertida, quase folclórica, e com um pitada de ironia, devido aos personagens utilizados, já que o poeta foi adepto convicto do paganismo. Sem me estender mais, convido-os para se deliciarem com estes versos na tradução de Alberto Ramos:

A Lenda da Ferradura

Quando ainda obscuro e desconhecido
Nosso Senhor andava na terra
Muitos discípulos o seguiam
- Que raras vezes o compreendiam,
Amava doutrinar as massas
Nas ruas amplas e nas praças,
Pois à face dos céus a gente
Fala melhor e mais livremente.
Ali, dos seus divinos lábios
Fluíam os ensinamentos mais sábios;
Pela parábola e pelo exemplo
Faziam de cada mercado um templo.

Certa vez quando, em paz e santidade,
Chegava com os seus a uma cidade,
Viu qualquer coisa luzir na estrada;
Era uma ferradura quebrada.
Disse a São Pedro com brandura:
- "Pedro, apanha essa ferradura!"
Porém São Pedro, no momento,
Tinha ocupado o pensamento
E absorto em êxtase profundo,
Sonhava-se o dominador do mundo,
Rei, papa, ou tal que se pareça.
Aquilo enchia-lhe a cabeça;
E havia de dobrar a espinha
Por uma coisa tão mesquinha?
Se fosse um cetro, uma coroa,
Mas uma ferradura à toa...
E foi seguindo, distraído,
Como se não tivesse ouvido.

Curvou-se Cristo, com doçura
Celeste, angélica, humilde,
E ergueu do chão a ferradura;
E quando entraram na cidade
Vendeu-a em casa de um ferreiro.
Comprou cerejas com o dinheiro.
Guardando-as, à sua maneira,
Na manga – em falta de algibeira.

Dali saíram por outra porta.
Fora a campanha estava morta;
Nem flor nem sombra; ao longe, ao perto
Era o silêncio, era o deserto,
Era a desolação; ardia,
Torrava, o sol do meio-dia.
Que não valia em tal secura
Um simples gole de água pura !
Nosso Senhor caminha à frente.
Deixa cair discretamente,
Furtivamente, uma cereja
Que Pedro apanha, salvo seja,
Com cabriolas de maluco.
A frutinha era mesmo o suco.
Outra cereja no caminho
Atira o Mestre de mansinho,
Que Pedro apanha vorazmente.
E assim por diante, não uma vez somente,
Fê-lo o Senhor dobrar a espinha
Tantas vezes quantas cerejas tinha.
Durou a cena um bom pedaço.
Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:

- “Pedro, se fosses mais ligeiro
Não tinhas tido este cansaço.
Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,
Tarde por muito menos se fadiga.”

(1797)

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) 



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