Este admirável poema, talvez colhido do cancioneiro popular, foi escrito por Goethe, um dos maiores poetas da literatura mundial. Depois de Leonardo da Vinci, Johann Wolfgang von Goethe é o gênio mais completo de que se tem notícia, pois envolveu-se com quase todas as áreas do conhecimento humano. É fato indiscutível, Goethe e Schiller são os maiores nomes da literatura alemã, assim como Dante é da italiana, Shakespeare da inglesa, Cervantes da espanhola, Camões da portuguesa. Goethe escreveu poemas, peças de teatro, romances, novelas, diários, autobiografias e ensaios, destacando-se genialmente em todos os gêneros. Foi também pintor e ator de talento. Estudioso de Ciências Naturais, foi o responsável pela descoberta de que o crânio é o desenvolvimento da última vértebra da coluna que sustenta o corpo humano; em Ótica trabalhou vários anos na obra "Teoria das Cores", bastante controversa, por sinal; em Botânica, deixou-nos em versos a "Metamorfose das Plantas", e outros tratados científicos. Não é simples escrever sobre um homem assim. Em outra oportunidade faço um breve comentário de sua vida e obra. Agora, porém, a intenção é mostrar esta "Lenda da Ferradura", como curiosidade, pois é diferente de tudo que o erudito autor escreveu. É uma parábola despretenciosa, leve, divertida, quase folclórica, e com um pitada de ironia, devido aos personagens utilizados, já que o poeta foi adepto convicto do paganismo. Sem me estender mais, convido-os para se deliciarem com estes versos na tradução de Alberto Ramos:
A Lenda da Ferradura
Quando ainda obscuro e desconhecido
Nosso Senhor andava na terra
Muitos discípulos o seguiam
- Que raras vezes o compreendiam,
Amava doutrinar as massas
Nas ruas amplas e nas praças,
Pois à face dos céus a gente
Fala melhor e mais livremente.
Ali, dos seus divinos lábios
Fluíam os ensinamentos mais sábios;
Pela parábola e pelo exemplo
Faziam de cada mercado um templo.
Certa vez quando, em paz e santidade,
Chegava com os seus a uma cidade,
Viu qualquer coisa luzir na estrada;
Era uma ferradura quebrada.
Disse a São Pedro com brandura:
- "Pedro, apanha essa ferradura!"
Porém São Pedro, no momento,
Tinha ocupado o pensamento
E absorto em êxtase profundo,
Sonhava-se o dominador do mundo,
Rei, papa, ou tal que se pareça.
Aquilo enchia-lhe a cabeça;
E havia de dobrar a espinha
Por uma coisa tão mesquinha?
Se fosse um cetro, uma coroa,
Mas uma ferradura à toa...
E foi seguindo, distraído,
Como se não tivesse ouvido.
Curvou-se Cristo, com doçura
Celeste, angélica, humilde,
E ergueu do chão a ferradura;
E quando entraram na cidade
Vendeu-a em casa de um ferreiro.
Comprou cerejas com o dinheiro.
Guardando-as, à sua maneira,
Na manga – em falta de algibeira.
Dali saíram por outra porta.
Fora a campanha estava morta;
Nem flor nem sombra; ao longe, ao perto
Era o silêncio, era o deserto,
Era a desolação; ardia,
Torrava, o sol do meio-dia.
Que não valia em tal secura
Um simples gole de água pura !
Nosso Senhor caminha à frente.
Deixa cair discretamente,
Furtivamente, uma cereja
Que Pedro apanha, salvo seja,
Com cabriolas de maluco.
A frutinha era mesmo o suco.
Outra cereja no caminho
Atira o Mestre de mansinho,
Que Pedro apanha vorazmente.
E assim por diante, não uma vez somente,
Fê-lo o Senhor dobrar a espinha
Tantas vezes quantas cerejas tinha.
Durou a cena um bom pedaço.
Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:
- “Pedro, se fosses mais ligeiro
Não tinhas tido este cansaço.
Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,
Tarde por muito menos se fadiga.”
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
Nosso Senhor andava na terra
Muitos discípulos o seguiam
- Que raras vezes o compreendiam,
Amava doutrinar as massas
Nas ruas amplas e nas praças,
Pois à face dos céus a gente
Fala melhor e mais livremente.
Ali, dos seus divinos lábios
Fluíam os ensinamentos mais sábios;
Pela parábola e pelo exemplo
Faziam de cada mercado um templo.
Certa vez quando, em paz e santidade,
Chegava com os seus a uma cidade,
Viu qualquer coisa luzir na estrada;
Era uma ferradura quebrada.
Disse a São Pedro com brandura:
- "Pedro, apanha essa ferradura!"
Porém São Pedro, no momento,
Tinha ocupado o pensamento
E absorto em êxtase profundo,
Sonhava-se o dominador do mundo,
Rei, papa, ou tal que se pareça.
Aquilo enchia-lhe a cabeça;
E havia de dobrar a espinha
Por uma coisa tão mesquinha?
Se fosse um cetro, uma coroa,
Mas uma ferradura à toa...
E foi seguindo, distraído,
Como se não tivesse ouvido.
Curvou-se Cristo, com doçura
Celeste, angélica, humilde,
E ergueu do chão a ferradura;
E quando entraram na cidade
Vendeu-a em casa de um ferreiro.
Comprou cerejas com o dinheiro.
Guardando-as, à sua maneira,
Na manga – em falta de algibeira.
Dali saíram por outra porta.
Fora a campanha estava morta;
Nem flor nem sombra; ao longe, ao perto
Era o silêncio, era o deserto,
Era a desolação; ardia,
Torrava, o sol do meio-dia.
Que não valia em tal secura
Um simples gole de água pura !
Nosso Senhor caminha à frente.
Deixa cair discretamente,
Furtivamente, uma cereja
Que Pedro apanha, salvo seja,
Com cabriolas de maluco.
A frutinha era mesmo o suco.
Outra cereja no caminho
Atira o Mestre de mansinho,
Que Pedro apanha vorazmente.
E assim por diante, não uma vez somente,
Fê-lo o Senhor dobrar a espinha
Tantas vezes quantas cerejas tinha.
Durou a cena um bom pedaço.
Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:
- “Pedro, se fosses mais ligeiro
Não tinhas tido este cansaço.
Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,
Tarde por muito menos se fadiga.”
(1797)
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
Nenhum comentário:
Postar um comentário