sábado, 14 de março de 2009

Buddha e o Sofrimento Humano



Não adianta ignorar o sofrimento e virar a face para não ver as coisas tristes do mundo. Ora, elas existem!

Essas palavras fazem-me lembrar de uma história ocorrida há seis séculos antes de Cristo, em Lumbine, sul do Nepal. É a história de Siddharta Gautama, o príncipe hindu, nascido e criado em um palácio repleto de esplendores. O seu pai era um rajá e quis criá-lo distante da tristeza e da dor, mostrando-lhe apenas coisas belas, para que o filho não tomasse ciência das misérias do mundo. Assim, ele cresceria sempre feliz, pensava o pai. Quando Siddharta completou dezoito anos, ele sentiu uma grande curiosidade de conhecer o misterioso mundo além dos muros do palácio. O pai, muito preocupado com o que o filho poderia ver, preparou a cidade, organizando uma bela festa. Tomou o máximo de cuidado para que ficassem escondidas a pobreza e a miséria e, assim, a recepção ao príncipe mostrou-se em cenas repletas de alegria, como se a dor e a tristeza pudessem ser ocultas para sempre. Siddharta desconfiou de tudo aquilo. Passado algum tempo, ele teve uma idéia: disfarçou-se de homem comum e saiu com Chana, seu cocheiro. Então, caminhando pelas ruas da cidade, viu um velho com a pele amarela enrugada, depois viu um homem doente e um outro mendigando o pão e, por fim, presenciou um enterro em que o povo carregava um corpo apagado e inerte. A partir desse dia começou a questionar sobre o enigma da existência: Por que os homens sofrem? E não houve meio, teve que seguir o seu destino. Aos vinte e nove anos, deixou a esposa e o filho, ainda bebê, e foi em busca da resposta, compreendendo que existiam mais coisas além de seus palácios e de seus belos jardins. Viveu durante seis anos como um eremita, tendo vida de asceta e vivendo de esmolas. Mas não encontrou a iluminação através da completa renúncia aos bens materiais. Ele estava tornando-se apenas mais um mendigo, igual a tantos no mundo. Entretanto, continuou a perquirição. Siddharta ainda fez uma última tentativa. Sentou-se debaixo de uma figueira em uma aldeia do norte da Índia. Lá ficou durante 40 dias e 40 noites, sem comer, beber ou dormir, na convicção de que não se ergueria dali até compreender o mistério do sofrimento e uma maneira de amenizá-lo. E ele só se ergueu mesmo quando obteve a resposta. A partir de então, o príncipe Siddharta passou a ser conhecido como o Buddha, que em sânscrito significa ‘Iluminado’.

Embaixo da figueira sagrada, chamada ‘Bo’, Buddha havia meditado muito. Descobriu uma grande verdade e passou a ensiná-la aos primeiros discípulos: “O caminho além da tristeza e do sofrimento é o caminho do meio, entre a austeridade e a sensualidade.”

Buddha era um espiritualista inteligente. Ele chegou à conclusão de que pouco adiantava a martirização do corpo com penitências e jejuns prolongados e tanta coisa mais. Dizia que quando o corpo está desnutrido o espírito também enfraquece e não raciocina direito. Creio que esse pensamento é sabedoria.

No Sermão de Benares, Buddha disse: “A sensualidade é enervante, o homem que se entrega aos prazeres é escravo de suas paixões e a busca do prazer é degradante e vulgar. Mas não há mal em satisfazer às necessidades da vida. Conservar o corpo em boa saúde é um dever, pois de outro modo não seremos capazes de aparelhar a lâmpada da sabedoria e conservar nossas mentes fortes e claras. A água cerca a flor do lótus, mas não molha suas pétalas. Este é o caminho do meio, ó bhikkhus, que se mantém distante dos dois extremos.”

Eu compreendo as palavras de Buddha da seguinte maneira: O caminho do meio é a moderação. Não esbanje alimentos! Faça jejum, mas não demore muito nele! Faça sexo sim, mas não se deixe escravizar por ele! Beba a sua cerveja ou a sua cachaça, mas saiba o momento de parar! O correto é não abusar dos prazeres físicos, mas também não deixe faltar alegria para o corpo. Não deixe de fortalecer a matéria, mas não se esqueça: ela é transitória. Só o espírito é eterno.

O Siddharta Buddha citava as “quatro verdades nobres: a existência implica sofrimento; o sofrimento resulta do desejo; o desejo pode ser destruído; e para destruí-lo deve-se seguir os oitos nobres caminhos que incluem idéias, desejos, fala, conduta, meio de vida, esforços, atenção e meditação justos e corretos.” Nessas quatro verdades e nesses oito caminhos o Budismo apóia toda a sua doutrina.

É justamente o desejo que movimenta o mundo. O sistema capitalista incentiva muito o desejo de posse, pois sem ele não há consumismo. E sem consumismo as engrenagens do sistema não funcionam. É desejo de possuir um carro esporte último modelo, é desejo de possuir uma mansão na praia, é desejo de possuir uma linda jovem. É o desejo da matéria sem alma dentro. Isso é tolice. E o sofrimento das pessoas continua. Não lhes sobra tempo para pensar na alma, porque elas têm que lutar muito para conseguir uma posição social superior. Ora, a verdade é que a maioria não consegue satisfazer o seu desejo de posses. Apenas uma minoria consegue: compra, compra, compra, mas isso não preenche o vazio. Então, as pessoas sofrem, sofrem. A maioria sofre porque nada consegue. A minoria sofre porque consegue, e descobre, lá no íntimo com os seus botões, que a posse material é ilusão, é uma satisfação que dura o instante de um suspiro. O que dá alegria à alma é outra coisa: é fazer o bem aos outros, é sentir o quanto as pessoas ficam agradecidas por isso. Riqueza duradoura é saber que as pessoas nos amam pelo que somos e não pelo que temos. A frase é tão velha que causa inveja ao pergaminho em que foi escrita e, mesmo assim, parece-me que ainda não compreendemos a sua essência.

Bons pensamentos, bons desejos, palavras que consolam a dor de outros, conduta correta, maneira de viver honesta, esforço para vencer as imperfeições, atenção ao sofrimento das pessoas e muita meditação. Eu creio que esses oito caminhos, independentes de conceitos religiosos, podem nos levar, um dia, ao Reino de Deus. E se não existir Céu, se não existirem recompensas nem nada, como os materialistas (dogmáticos!) insistem em afirmar, há pelo menos um consolo: agindo corretamente com as pessoas encontraremos um pouco de paz interior e uma alegria mais verdadeira aqui nesta Terra mesmo.

Buddha estava muito velho quando morreu e, evidentemente, muito mais sábio. Acredita-se que as suas últimas palavras, ditas ao discípulo Ananda, que o segurava entre os braços, foram estas: “A decadência é inerente a todas as coisas. Trabalhe para a sua própria salvação com perseverança.”

Buddha usou de ironia em seu último suspiro, mas teve compaixão, demonstrando o quanto compreendia a incoerência da loucura humana. O mais cômico na espécie da qual fazemos parte é que, pelo fato de termos um corpo que respira, que anda, que ri e chora, pensamos que assim estamos totalmente vivos, e por isso... morremos de medo de morrer. Ora, ninguém quer envelhecer, mas a velhice vem. Ninguém quer morrer, e não adianta espernear, a morte vem mesmo. Essas são verdades irrefutáveis. Temos que conviver com elas e aceitá-las; ou meditamos sobre o mistério do desconhecido ou sucumbimos sob o peso do medo da morte e do que pode existir depois dela. Pois é certo que a angústia do medo da morte engaiola lentamente as asas do espírito, turvando a visão e enrijecendo a capacidade de voar para novas dimensões quando é chegada a hora.

Em meu modesto pensar, compreendo que a maior lição de Buddha é o incentivo para que descobríssemos dentro de nós a sabedoria da moderação, para que aprendêssemos a enxergar o ponto do meio que há em todas as coisas: o equilíbrio. Nessa investigação inclui-se também, e principalmente, a desconfiança: Desconfiem de tudo que é excessivo, até mesmo dos homens que são excessivamente santos. Desacreditem da onisciência dos mestres para que o Mestre interior seja ouvido e compreendido. Muitos guias podem orientar; outros podem confundir muito mais. Krishnamurti, muitos séculos depois de Buddha, também descobriu esse caminho, por conta própria, e nos alertou sobre a falibilidade dos mestres, admiravelmente, se considerarmos a sua coragem na abdicação de líder santo a que fora preparado.

No entanto, essa também é uma via de extremos. O ideal é abrir sim os ouvidos às palavras dos Mestres, e com lucidez retirar delas a mensagem que coaduna com a nossa própria descoberta íntima. A verdade, porém, é que cada um tem o seu exato momento de encontrar a iluminação, embora em menores proporções do que Aqueles Espíritos superiores que a vislumbraram e a compreenderam sob a figueira Bo ou sobre o Gtsemâni.

Existe um ponto central em nosso coração onde nenhum mestre ou guia nos consegue levar a não ser nós mesmos. Eles podem sugerir caminhos, podem nos auxiliar nos primeiros passos, podem nos amparar sob o sol ardente e nas etapas difíceis da caminhada, mas o encontro com o Eu verdadeiro é sempre solitário, essa missão é só nossa, de mais ninguém. Mas, para nosso alento, existe essa Voz única que nos pode conduzir na solitária jornada ao coração de nosso próprio mistério, ao Deus que habita em nós. Ouça-a no frescor de cada manhã e notará que o Tao, o Nirvana, o Reino dos Céus têm algo em comum: o milagre da existência. Faça bom uso dessa oportunidade: a de agradecer Átman, a Alma, a centelha divina dentro de nós. Aprendam com o sofrimento, mas não se esqueçam de assumir o direito e o dever do encontro com a alegria.

E, concluindo, não creio que haja ilusão nesta assertiva de Buddha: Cuidado com os extremos!

Pois compreendo que olhar diretamente para o sol não é diferente do mergulho na escuridão da noite. Tanto as trevas como a luz em excesso cegam a visão. Ambas obscurecem o caminho.


(em "Sobre a Cinza e o Fogo: Pequenas Reflexões")

2 comentários:

Suzane Lima disse...

Ah...o Budismo....Comecei a estudá-lo por causa do tão sábio Schopenhauer, não imaginado que era ele a maior fonte da sabedoria schopenhariana. Os ensinamentos de Buda, Buddha-dhamma, muito mais do que um sistema filosófico ou religioso, é a sabedoria do mais sábio dos homens de que se tem notícia. "Cada um é senhor de si mesmo, cada um é seu próprio mestre", foi o que Sidarta disse em seu leito de morte, quando lhe perguntaram quem deveria ser seu sucessor. Estamos todos presos em nosso próprio sofrimento, pensando no sofrimento de um eu, o que só faz aumentar o sofrimento, um verdadeiro ciclo vicioso. Sidarta reconheu esse sofrimento no homem e foi além disso, indicou sua origem, sua possiblidade de cessação e o caminho para a libertação. Mas não foi mera especulação filosófica, não foi uma verdade revelada a um único ser na terra, que por fim a revelou a outros. Não! É uma verdade que pode sim ser entendida por quem quer que seja, mas só pode ser compreendida de fato por quem pára pra enxergá-la, e foi o que Sidarta fez. Em suas meditações compreendeu a insubstancialidade e impermanência de tudo quanto existe, o sofrimento consequente, os renascimentos, a inindividualidade dos seres, da matéria inorgânica e dos planos imateriais. Enfim, poderia passar horas falando sobre o pouco que aprendi e que me foi passado pelo meu querido professor, Paulo Ramos Coelho Filho.
Mas por enquanto quero parabenizá-lo pelo blog, que venho acompanhando há pouco mais de uma semana e que infelizmente ainda não tive tempo de ler todas as postagens. O blog foi uma das melhores "recomendações virtuais" que já recebi nesses últimos tempos.
Muito origada por partilhar seus textos virtualmente. Quem disse que não há coisa boa na internet?
Um abraço.

Ailton Rocha disse...

Olá, Suzane. Obrigado. Muito contente com a sua aprovação, espero não decepcioná-la com os futuros textos. Retorno algumas palavrinhas ao seu intessante comentário, com o qual concordo. Muitos estudiosos da área da filosofia não consideram como filosofia propriamente dita a metafísica oriental. De fato, como você mencionou, no Budismo não há uma estrutura filosófica ou religiosa como a que concebemos no Ocidente. Digo o mesmo quanto ao Taoísmo e o Confucionismo. Em Krsna, Buda, Lao-tsé, Cristo e outros avatares falamos de algo maior: a sabedoria, que está muito além da lógica aristotélica ou do empirismo baconiano ou da visão analítica cartesiana. Estas estudam as partes para compreender o todo; e aquela, analisa o todo para desvendar as partes. Conforme penso, o ideal seria a união dos dois métodos. O pensamento seria muito mais vasto assim: Oriente e Ocidente juntos. No entanto, sabemos que as partes interagem; conhecê-las isoladamente impede o imprevisível funcionamento de cada uma, e sem essa ciência jamais compreenderíamos o Todo. Eis a chave para muitos teoremas que não foram resolvidos pela filosofia e pela ciência ocidentais. No entanto, Schopenhauer que bebeu na fonte oriental, principalmente nos Upanishads, concordava que é mesmo do Oriente que vem a Luz. Atualmente concorda-se que os pensadores ocidentais, desde os pré-socráticos até os que vieram após o Existencialismo, não chegaram a um acordo sobre os problemas do ser, do destino e da dor. Mas hoje a física quântica está aí para construir a ponte entre o ensinamento milenar do I Ching e dos Vedas com a complexidade analítica dos pensadores ocidentais. Talvez a resposta para o Futuro esteja em um Passado muito remoto.