Nesta oportunidade, quando estamos de luto pela partida do colega e amigo Cícero Acaiaba, atendo alguns pedidos de pessoas que já têm contato com a sua obra e de outras que ainda não a conhecem, e deixo aqui alguns versos escolhidos. Creio que são inéditos em livro. O próprio autor me presenteou com eles, após ler alguns de meus ensaios sobre Alquimia.
Cícero era muito versátil. Escreveu textos para os mais variados gostos, desde o soneto tradicional com métrica e rima até os versos brancos de complexa riqueza rítmica, passando pela simplicidade lírica da poesia amorosa e também pelas obras de circunstância, que foram muitas. Criou e adaptou-se dentro dos estilos romântico ou parnasiano, simbolista e impressionista, experimentando a escrita subconsciente do surrealismo, e até mesmo as tentativas pictóricas do concretismo. No meio de toda essa versatilidade e ecletismo, encontramos temas surpreendentes. Raramente o nível cai, mas sabemos que nem tudo permanecerá. Aquela parte com temática mais hermética e simbólica, que dá margem à interpretações diversas, tem chance de agradar diferentes gerações, devido à atemporalidade de estilo. Quando afirmo que a poesia de Acaiaba é uma das mais consistentes, belas e profundas deste país, refiro-me principalmente à esse um quarto, ou, talvez , metade da totalidade de sua obra.
Não é apenas o elogio caloroso de alguém que com ele conviveu e teve a oportunidade de ler e reler esse lado mais complexo de sua personalidade. É simplesmente a constatação de estar diante de um valor literário atemporal. Se tivesse nascido em países mais dados à cultura, na Europa, por exemplo, Cícero estaria há muito tempo reconhecido internacionalmente, sem favor algum. O que me entristece é a condição de ostracismo que encontra a sua obra no Brasil, há várias décadas. Entretanto, isso não choca ninguém. Ultimamente, neste país, os verdadeiros talentos trabalham nos bastidores, porque o palco está tomado pelos medíocres.
Os quatro sonetos abaixo são uma mostra da melhor parte da poesia de Cícero Acaiaba: a que utiliza metáforas e símbolos. São sonetos “modernos”, porque não utilizam rimas e métricas, apesar de estruturados nos quatorze versos de quatro estrofes. No lugar da rima, a assonância e a aliteração; substituindo a métrica, o ritmo. A dificuldade técnica em construções assim aparenta ser menor, mas não é. A exata musicalidade das palavras compensa a ausência de rimas, e a variedade rítmica é muito mais criativa do que a metrificação matemática do tradicional soneto.
Cícero não era estudioso da ciência esotérica e da alquimia dos antigos, mas conseguiu intuitivamente nesses versos a síntese dos quatro elementos. Até parece que o próprio Paracelso soprou em seus ouvidos conhecimentos milenares. É fantástico! E mesmo assim, não há novidade alguma no fato. Sabemos que os poetas são e sempre foram as antenas da raça humana, captam do Inconsciente Coletivo mistérios insondáveis do passado do mesmo modo que enxergam o futuro nas brumas do tempo presente. Cícero, como grande poeta que foi e é, possuía essa sintonia com o Cosmos, trazendo de dimensões múltiplas o tema e a inspiração para sua criativa obra, mas com o mérito de trabalhar exaustivamente essa expressão.
Basta uma única leitura para sentir os versos abaixo como algo superior, de conteúdo profundo e vasto, exposto através da forma elegante da arte. Como não perceber neles o conteúdo e, sobretudo, a beleza?
Além da intrincada temática de muitos versos de Augusto dos Anjos, não conheço na literatura brasileira nada parecido com esses poemas, que agora deixo aqui para que outros também os apreciem, pois já são patrimônio cultural. Esses versos, que certa vez recebi como presente, não são apenas meus. Precisam pertencer, por natural direito, a todas pessoas sensíveis.
O FOGO
Do contato dos corpos, desse atrito
dos pólos positivo e negativo
brilha a faísca azul, e após a chama
em pétalas de fogo se recorta.
Línguas flamantes que absorvem tudo,
deixando para trás carvão e névoa,
sua misteriosa combustão
vem das células rubras da membrana.
Na semente se hiberna e ela o esconde;
ao simples toque mágico do vento
árvore crepitante reacende.
Com fome de si mesmo alastra rápido
os galhos longos, trêmulos, vorazes,
até ser cinza – congelado fogo.
A ÁGUA
No berço frágil, lento e alvo das nuvens
as camândulas de água dormem calmas.
Esperam só pela maturação
quando vão ser em chuva transformadas.
No céu da tarde a noite acena e flâmula
borda o silêncio com veludo negro.
Depois, desabrochando-se as estrelas,
delas o orvalho suavemente cai.
Na fonte pura espumas de murmúrios
espraiam-se na várzea, e humildes, dóceis,
sorvem os animais o fim do dia.
No coração que amou e está sozinho
o sentimento flui, e chega aos olhos
cristalizado em pérolas de lágrimas.
No berço frágil, lento e alvo das nuvens
as camândulas de água dormem calmas.
Esperam só pela maturação
quando vão ser em chuva transformadas.
No céu da tarde a noite acena e flâmula
borda o silêncio com veludo negro.
Depois, desabrochando-se as estrelas,
delas o orvalho suavemente cai.
Na fonte pura espumas de murmúrios
espraiam-se na várzea, e humildes, dóceis,
sorvem os animais o fim do dia.
No coração que amou e está sozinho
o sentimento flui, e chega aos olhos
cristalizado em pérolas de lágrimas.
A TERRA
Terra de que foi feita a minha carne,
e que depois da morte a ela volta.
Que concebe a semente nas entranhas,
de onde nasce o dourado mar das searas.
Favo marrom e extenso das raízes,
crebra usina da seiva que alimenta.
Ergástulo de gemas preciosas,
real laboratório da alquimia.
Terra seca que a chuva desaltera,
fértil matriz das flores e dos frutos,
do húmus manancial inesgotável.
Na urna secreta corpos decompõem-se;
da miscigenação dos elementos
somente se liberta o azul das almas.
Terra de que foi feita a minha carne,
e que depois da morte a ela volta.
Que concebe a semente nas entranhas,
de onde nasce o dourado mar das searas.
Favo marrom e extenso das raízes,
crebra usina da seiva que alimenta.
Ergástulo de gemas preciosas,
real laboratório da alquimia.
Terra seca que a chuva desaltera,
fértil matriz das flores e dos frutos,
do húmus manancial inesgotável.
Na urna secreta corpos decompõem-se;
da miscigenação dos elementos
somente se liberta o azul das almas.
O AR
Existe sem se ver, para que existam
os seres do planeta. E invisível,
é doce respirá-lo, bom senti-lo,
semeando nos pulmões grãos transparentes.
Esponja tépida que lima o sangue
das impurezas todas, determina
o firme ritmo do coração
marcando nosso tempo neste mundo.
A substância do ar, o oxigênio,
que o vento leva pelo céu, por vastas
florestas, e montanhas, e desertos,
na água do mar, dos rios e dos pântanos,
alimenta também a fauna aquática:
ar – taça diáfana em que flui a vida.
Existe sem se ver, para que existam
os seres do planeta. E invisível,
é doce respirá-lo, bom senti-lo,
semeando nos pulmões grãos transparentes.
Esponja tépida que lima o sangue
das impurezas todas, determina
o firme ritmo do coração
marcando nosso tempo neste mundo.
A substância do ar, o oxigênio,
que o vento leva pelo céu, por vastas
florestas, e montanhas, e desertos,
na água do mar, dos rios e dos pântanos,
alimenta também a fauna aquática:
ar – taça diáfana em que flui a vida.
Cícero Acaiaba (1925-2009)
2 comentários:
Caro Ailton,
confesso que nunca tinha ouvido falar do Cícero, mas fiquei bastante comovida com sua homenagem a ele e com o pouco da obra dele que vc disponibilizou aqui. Fiquei bastante curiosa também, alguém que pode ser comparado a Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade não deve ser pouca coisa. Por isso, assim que pude, encomendei alguns livros dele que encontrei na Estante Virtual: Meu pé direito, Poemas escritos na névoa, A última elegia e 30 noturnos de minas e O homem com a faca no peito.
Poxa, é uma pena saber que tanta gente que gosta de boas leituras como eu não vai saber da existência da obra de Cícero Acaiaba. Por isso, pretendo digitalizar alguns contos e poemas dele, que passarei a alguns amigos, sempre pedindo pra que eles repassem a outros interessados.
Já digitei o conto "O homem com a faca no peito" e disponibilizei nesse link: http://www.scribd.com/doc/15023487/O-homem-com-a-faca-no-peito-Cicero-Acaiaba
A leitura de Cícero é de altíssimo nível, confesso que não esperava tanto, e olha que esperava muito. Não entendo o porquê de seu nome não ser conhecido, nos meios acadêmicos sobretudo. No canto IX de Os Lusíadas, estrofe 93, estão os seguintes versos:
"Porque essas honras vãs, esse ouro puro
Verdadeiro valor não dão à gente:
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer."
"merecê-los sem os ter...", é esse o caso de Cícero, que já se foi sem ter o reconhecimento merecido. Tenho, entretanto, uma pequena esperança de que, tal como aconteceu com tantos nomes consagrados, sua obra ainda possa ser divulgada em escolas, universidades, núcleos de literatura... enfim, em quaisquer lugares onde estejam pessoas que apreciam sua obra, sem ainda saber. Isso não, necessariamente, no sentido de uma vã homenagem póstuma, mas no sentido de não se cometer o pecado de deixar uma obra imortal ser esquecida e morrer, ainda que indiretamente, junto com os poucos privilegiados que ouviram seu nome e leram sua poesia.
É uma honra comunicar-me com você, continuo lendo seu blog e adorando.
Um grande abraço
Suzane
Cara Suzane
O seu interesse pela obra de Cícero Acaiaba, adquirindo mesmo as obras recomendadas, e a boa vontade de disponibilizar e divulgar em seu blog os textos dele, deixam-me muito contente.
Noto em sua sensibilidade um sincera devoção pelas artes. Após observar atentamente o perfil de seu blog, a quantidade de grandes obras que leu e outras que busca compreender, compreendo que tem aptidão para reconhecer uma obra literária de importância.
Todas as pessoas que apreciam uma boa leitura merecem um contato maior com a beleza da poesia e de outros textos de Cícero Acaiaba. O que você fizer nesse sentido, divulgando-o, estará enriquecendo muitos leitores.
Um abraço e Obrigado!
Ailton
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