quinta-feira, 16 de abril de 2009

Miguel Torga: Vicente



Miguel Torga é um dos maiores poetas portugueses do século XX, ao lado de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e José Régio. Além de grande poeta, Torga continua na firme posição de um dos maiores contistas de toda a história literária lusitana.

Adolfo Correia da Rocha, nome verdadeiro de Miguel Torga, nasceu em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes, em 12 de agosto de 1907, e faleceu em Coimbra, em 17 de janeiro de 1995. Aos 13 anos, instalou-se na fazenda de um tio em Minas Gerais, Brasil. De volta a Portugal, aos 18 anos, estudou medicina em Coimbra e formou-se em 1933. Colaborou na revista Presença e esteve à frente de duas outras, Sinal e Manifesto.

Autor de uma obra poética vasta e profunda, encontrou no campo e nas aldeias portuguesas seu universo de poesia e de humanidade. Fez de sua pequena cidade uma província mítica, repleta de símbolos bíblicos.

Destacou-se também como biógrafo de si mesmo, através de uma linguagem exata e criativa, como se nota na série dos "Diários", em prosa e versos; e também no romance autobiográfico "A Criação do Mundo", de suma importância para compreensão do pensamento e do estilo do autor. O romance foi escrito no período de 1937 a 1981, publicado inicialmente em 5 livros separados e, em 1985, integralmente, destacando "O Quarto Dia da Criação do Mundo", cujas críticas ao regime franquista espanhol levaram-no à prisão em 1940.

“Vicente” é um de seus contos mais fascinantes, incluído na coletânea “Bichos”.

Vicente

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados pelo mesmo destino - , apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.

Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.

A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em leitos e condenados.

Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:

-Noé, onde está meu servo Vicente?

Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.

Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.

Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.

-Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...

Nada.

-Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no!

Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.

-Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?

-Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.

-Vicente fugiu...

-Fugiu?! Fugiu como?

-Fugiu... Voou...

Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.

Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.

Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.

-Noé, onde está o meu servo Vicente?

Acordado do desmaio poltrão, trêmulo e confuso, Noé tentou justificar-se.

-Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...

-Noé!...Noé!...

E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.

Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas - , dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.

Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?

Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?

Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravaram-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.

Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.

Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?

Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.

Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo. Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino. Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu" ! E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania. Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as conseqüências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.

Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.

Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.

Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.

Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.


Miguel Torga (1907-1995) 



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