segunda-feira, 20 de abril de 2009

A Bacia



Os magos chegaram em silêncio. Não disseram uma só palavra. Vieram com suas túnicas pretas e na cabeça o chapéu cônico. Quatro deles seguraram os meus pés, um outro apertou o meu braço esquerdo, e mais um outro segurou o meu braço direito. O último deles agarrou firmemente a minha cabeça e o meu queixo. Nem precisava apertar tão forte, pois eu não pretendia mesmo gritar. Os magos foram carregando-me pela casa, em direção à porta dos fundos. Atravessaram a varanda e me levaram para o mato. O mato era muito longe. Tão distante de minha casa que a viagem durava muitos dias. Um pouco pelo ar, carregado nas costas dos magos, um pouco pela terra, arrastado por eles. Cheguei a um lugar ermo e solitário, desconhecido para mim. Fui solto no chão, como se solta um saco de batatas, desmerecidamente. Depois, eles sumiram. Permaneci no mesmo lugar. Nem me atrevi a tentar uma fuga. Os magos sabem de tudo. Eles sabem de coisas ocultas, sabem de tudo o que se passa no céu e na terra. Podem ler os pensamentos das pessoas. Por isso fiquei ali mesmo, deitado na grama, brincando com um raminho entre os dentes. Logo eles vieram. Reuniram-se à minha volta e declararam-me culpado. Um deles, o mais velho, leu a condenação em voz alta. E então, conduziram-me para um vale. Lá, eu fui jogado dentro de uma enorme e velha bacia oval. Dentro dela, boiavam centenas de fetos vivos e muitos embriões.

Foi assim que aconteceu...

... E tudo talvez tenha se iniciado no dia em que conheci Marta, a funcionária do escritório.

Fui obter informações sobre o empréstimo para as plantações em meu sítio. De início, quando a vi, ela me pareceu insignificante. Não era, em hipótese alguma, uma jovem feia. Entretanto, não era muito bonita. Talvez ela tivesse sido bem mais bela na adolescência. A funcionária chamava-se Marta, como pude notar lendo a placa que estava sob o balcão, que indicava quem era o encarregado de cada setor. Marta atendeu à minha solicitação de maneira pronunciada, com uma exagerada solicitude e no decorrer da entrevista ela soltava, de quando em quando, um sorrisinho bajulador que detestei. Achei-a fingida e saliente no seu tratamento. Eu sabia que assim era o modo de as funcionárias atenderem a todos os clientes. Muitos gostam disso, mas eu não! Os gestos comedidos são sempre mais singulares e educados. Durante todo o tempo, ela me atendeu assim, e para tudo que eu falava e fazia, recebia de sua parte os mais vulgares elogios e risinhos idiotas. Notava-se que era uma pessoa de pouca cultura; uma moça pobre que precisava de seu emprego para, talvez, ajudar o pai a manter a família numerosa, e o único meio para garantir o emprego era bajular os superiores, tanto os chefes como os clientes. Cheguei a sentir pena da mocinha.

Combinei com ela a importância do empréstimo, assinei a papelada, bem como a nota promissória. Ela me informou que a primeira retirada seria dentro de quinze dias e as outras, nos meses seguintes.

Duas semanas depois, no prazo determinado, eu voltei para efetuar a primeira retirada do empréstimo. Marta atendia alguns clientes e, ao notar minha presença, acenou para que eu aguardasse um momento. Fez um gesto exagerado, com a mesma solicitude de antes. Fiquei, então, encostado no balcão, observando-a no trabalho.

Marta era uma moça baixinha. Os cabelos eram castanhos e as mechas grossas iam até os ombros. Na primeira vez que vi os cabelos de Marta, pensei que estavam sujos e que não eram lavados constantemente, pois as mechas desciam até os ombros em cordões compactos. Depois de observar melhor, entendi que os seus cabelos eram de natureza oleosa e absorviam a poeira com muita facilidade. Por isso eram tão ensebados. O corpo de Marta, embora pequeno e atarracado, era bem distribuído. Não havia flacidez nas coxas nem no ventre e os seios eram eretos. A pele, levemente amorenada, era coberta por delicados pelos louros nos braços e na nuca.

A sua organização e a sua sequência de trabalho eram notáveis. Parecia não se perder no meio da papelada. Assim que terminava de atender um cliente, Marta agrupava os documentos já utilizados e os papéis recém-assinados em uma pasta conservada com enorme esmero e, em seguida, arquivava metodicamente as fichas, bem como a pasta pertencente àquele cliente, em ordem alfabética, em um fichário perfeitamente organizado. Fazia tudo isso com uma destreza admirável, rapidamente, e, ao mesmo tempo, com muita delicadeza. Ela movia os dedos, abaixava-se para manusear as gavetas inferiores do arquivo, e os cabelos caíam-se-lhe nos ombros, dando a ela uma aparência sensual e simpática. Todos esses movimentos eram executados um pouco de lado, pois assim era possível dar sequência ao seu serviço de arquivo e, ao mesmo tempo, sorrir atenciosamente para os clientes, que aguardavam a sua vez para serem atendidos. Uma pessoa organizada geralmente tem um espírito organizado – eu pensei.

Um mês depois, quando voltei pela terceira vez no escritório, conversei sobre outros assuntos com a mocinha, porque fui o único cliente que havia chegado assim que abriram as portas para o atendimento ao público. Não sei por que cargas d’água iniciamos assunto sobre música. Falamos sobre ballet, mais precisamente sobre Coppelia, de Delibes, exibido na noite anterior na TV. Ela confessou não conhecê-lo nem saber mais nada sobre a música, a não ser aqueles poucos trechos apresentados no vídeo da televisão. Disse que adorava aquele tipo de música, mesmo não conhecendo em profundidade qualquer peça ou autor clássico.

Ela chegou muito próxima de mim. Só assim eu pude notar que seus olhos eram claros. Marta, com os cotovelos apoiados no balcão, inclinou-se um pouco para frente e olhou nos meus olhos e me disse algumas palavras com a voz velada. Mas o seu olhar tornara-se levemente triste. E ele me contou mais coisas do que a sua voz. Marta disse:

- Eu não conheço nada sobre esse tipo de música. Nunca tive oportunidade de adquirir outros conhecimentos além daqueles ensinados superficialmente no colégio técnico. É difícil também conseguir bons livros. Gosto de literatura, mas conheço tão pouco... Não tenho tempo para dedicar-me à cultura.

Essa conversa e a confissão tímida da funcionária surpreenderam-me. Eu fiquei comovido e disse-lhe:

- Esse tipo de conhecimento você não encontra mesmo nos currículos das escolas. Este país não é muito sério, não se preocupa muito com as atividades artísticas e culturais nem com a história da arte. Mas você não deve esperar por ninguém para começar a aprender a algo novo. Temos uma boa biblioteca na cidade. Vá lá e pesquise. Nós podemos e devemos ser os nossos próprios professores.

Depois desse dia, voltei mais duas vezes nos meses seguintes para retirar as últimas parcelas do empréstimo. Não tive outras oportunidades de conversar com Marta, mas notei que ela me cumprimentava de maneira diferente desde o nosso último e curto diálogo. Ela acenava para mim com respeito. Então, passei a observá-la. Espreitava-a sorrateiramente com o canto dos olhos. Observava os seus gestos e atitudes. Quando se virava para procurar algum documento ou quando arquivava as pastas, eu a observava, pois o arquivo ficava um pouco de lado do balcão e, assim, eu conseguia vê-la melhor. Ela, às vezes, parava o serviço e, momentaneamente, buscava com o olhar alguma coisa no vazio. Depois, abaixava a cabeça e virava com esforço para continuar o seu atendimento vulgar. E notei novamente que os seus olhos eram claros.

Alguns meses se consumaram. As plantações foram iniciadas. Nesse período, não fui ao escritório, pois haviam terminado as retiradas referentes ao meu empréstimo. Por isso, me esqueci também de Marta.

Em uma noite de cansaço, depois de um dia todo administrando o plantio, aconteceu que me lembrei da funcionária e senti uma saudade inexplicável. Resolvi ir vê-la no outro dia cedo.

No escritório, os funcionários informaram-me que Marta estava viajando. Uma viagem de férias – disseram-me.

Então, uma saudade doentia apossou-se de mim. Ela foi crescendo aos poucos. Noite após noite. Dia após dia. Eu ficava, nas noites de insônia, recordando aqueles olhos claros de Marta. Quando se conhece a tristeza em olhos castanhos não nos surpreendemos muito. Mas os olhos de Marta não eram castanhos. Não pode existir melancolia em olhos claros! E os olhos da funcionária pobre eram claros e ligeiramente melancólicos. É inquietante. É como um entardecer no mar.

Depois de um mês, voltei ao escritório para rever Marta. Encontrei-a mais morena, com um corte diferente de cabelo. No entanto, lá estava ela. No mesmo lugar, atrás do mesmo balcão marrom, atendendo os mesmos clientes. Aguardei um pouco em lugar escondido, até que ela se desocupasse de seus afazeres. A fila era pequena. Assim, fui me aproximando devagar, até que ela me viu e acenou secamente com um sorriso moldado. Mas quando estendi a mão para cumprimentá-la, ela sorriu e deu a volta por trás do balcão. Marta beijou minha face delicadamente e disse que sentira a minha ausência nos meses anteriores, inclusive no tempo em que viajara. Recordou muito minhas palavras sobre ser mestre de si mesmo. Eu ri e respondi-lhe que tinha de ser assim mesmo. Existe um universo para ser conhecido e só depende de nós dar o primeiro passo. Ciente de suas obrigações, não demorei muito. Logo me despedi, prometendo aparecer de vez em quando para vê-la.

Aquele beijo, um tanto seco e rápido, tomou conta de meu pensamento durante várias semanas. Eu estava apaixonando-me por Marta. Mas não era pelo seu beijo, não era pelos seus olhos. O que me deixava desesperado era saber como Marta conseguia passar de um mundo para outro e depois retornar às suas condições tão desiguais de atitudes e de temperamento. Eu havia me apaixonado por essa sua capacidade de saltar da mediocridade para a seriedade, e depois da compenetração para os risinhos vulgares. E dava-me calafrios só de pensar. Uma pessoa só não pode fazer isso. Rir tão vulgarmente, tão forçadamente e depois comprimir os lábios com tanta sutileza e olhar melancolicamente o longínquo com aqueles olhinhos claros! Não! Não posso ser enganado dessa maneira!

Um dia, planejei encontrá-la. Fiz com que o encontro coincidisse com o seu horário de saída do serviço. Tudo pareceu uma simples coincidência. Ao cruzar uma esquina, ela viu-me e seguimos juntos até perto de sua casa. Fomos conversando sobre fatos do cotidiano. Senti que Marta demonstrava interesse pela minha pessoa. Ela olhava para cima – era muito baixinha – e com seriedade prestava atenção em minhas palavras. Despedimo-nos depois de uma hora, com beijos, comentando o belo acaso de nosso encontro.

Durante toda a manhã do outro dia, refleti bastante sobre a vida da funcionária pobre pela qual eu havia me apaixonado. Resolvi pedi-la em casamento, mas antes quis dar satisfação aos meus pais.

Após o almoço, sentei-me em uma poltrona da varanda e fiquei observando o meu pai, e, ao mesmo tempo, eu escolhia as palavras para começar o assunto. Meu pai, promotor aposentado, ficava o dia todo lendo os noticiários do jornal. Era um homem magricela, muito magro mesmo; por isso, o seu pescoço parecia medir quase meio metro. Tinha, constantemente, pendendo do nariz, uns óculos grossos como ladrilhos, que quase escondiam o bigodinho e o rosto pequeno e redondo. E no lugar da boca estava o charuto, que ele apagava somente na hora das refeições. A sua paixão era ler notícias. Lia e relia várias vezes todos os jornais do dia. Quando papai encontrava neles o comentário sobre os investimentos na Bolsa, que era a sua coluna predileta, ele emitia guinchos agudos, e de tanta satisfação punha a língua para fora. Ao lado dele permanecia minha mãe. Gorda, pelanca nos braços. Vestia uns saiotes azuis. Enormes. Era calada. Dificilmente fazia observações. Quando não gostava de algum assunto, resmungava um pouco e logo abandonava a sua poltrona, deixando meu pai a dialogar com os botões. Entre um afazer e outro, nas prendas domésticas, ela cozia blusas de rendas para presentear as filhas casadas e os netos. Tinha uma predileção doentia pela cor azul. Sempre falava para os filhos que Deus deveria ter feito o mundo só azul.

Então, pensei em aproveitar aquela oportunidade, de estarmos os três ali reunidos, para conversarmos sobre a minha decisão de noivado e um casamento para breve. É claro: se Marta concordasse!

Todavia os meus pais pressentiram alguma coisa e, quando fui falar sobre o assunto, eles mudaram de lugar. Meu pai ergueu-se e sentou-se na poltrona de minha mãe e ela fez o mesmo, trocando o seu lugar com o de papai. De novo tentei e eles procederam da mesma maneira. Na terceira vez que fizeram isso eu disse-lhe que necessitava de uma opinião sincera e muito importante na minha vida. Papai enfiava a cabeça no jornal e soltava baforadas de charuto por um canto da boca, e pelo outro, grunhia, lendo, talvez, sobre a Bolsa de Valores. Eu aproximava-me de mamãe e ela, numa incrível velocidade, enrolava uma fita azul no dedo indicador esquerdo. Quando o rolo estava quase pronto, ela o desmanchava e pegava uma renda azul e a enrolava no indicador direito, desenrolando-a também logo em seguida. E assim, rapidamente, ela continuava no mesmo gesto, às vezes a fita, às vezes a renda, enrolando e desenrolando, passando de um dedo para o outro. Vi que não tinha condições de expor o meu assunto, e deixei para a hora do jantar para conversar sobre Marta. Talvez eles me ouvissem...

Apesar de minhas tentativas, não me quiseram dar atenção nem no outro dia nem no outro. Três dias inteiros nesse dilema!

Quando completou-se uma semana de tentativa, os meus pais atingiram o cúmulo do silêncio e do pressentimento. Então, gritei que não aguentava mais aquela tortura. Eles tinham que me ouvir de qualquer maneira. Papai deixou o jornal cair e minha mãe largou o rolo de fita. Respirei aliviado. Consegui! – pensei. Os dois ergueram-se em silêncio e se aproximaram de mim docilmente, com aqueles olhos meigos, inerentes aos pais. Eu sorri ao vê-los abraçarem-se. Mas aí começou tudo de novo. Eles inclinaram os lábios perto de meus ouvidos e cantaram muito alto uma ária de ópera que eu detestava (até hoje eu a detesto!). Tapei os ouvidos e corri desesperado para o meu quarto.

No outro dia eu não quis almoçar e permaneci trancado. No entanto, saí para o jantar, posto que a fome começava a importunar-me. Tomei o meu lugar à mesa e servi minha refeição. Durante todo o tempo, fiquei de cabeça baixa e tentei esconder os meus olhos, que estavam inchados, pois eu havia chorado o dia todo. Após o jantar, meu pai colocou ternamente a sua mão sobre o meu ombro, e disse:

- Notei que você esteve muito irritado nos últimos dias. Em conversa com sua mãe, ela disse que você estaria tentando dizer alguma coisa para nós. É verdade, Daniel, meu filho?

Não acreditei no que eu ouvira. Imediatamente contei-lhes sobre Marta, que eu havia me apaixonado por ela, pretendia mesmo casar-me com ela. Expliquei que se tratava de uma moça pobre, baixinha, que ajudava o pai nas despesas de casa. Era uma pessoa confiável.

Papai parou os olhos em mim, assentou-se na poltrona e acendeu o charuto. Se ele pegasse o jornal, estaria tudo acabado. E pegou mesmo, mas antes ele deu uma risadinha e falou:

- Ah! Casamento? É muito cedo para isso. Você deve pensar sobre essa sua atitude. Não acha que é muito precipitada? O seu avô Jonas, com certeza, não iria gostar.

- Mas, pai, em que o vovô Jonas iria opinar? Ele morreu quando eu era bebê.

- Sim! Morreu. Mas ele foi um artista de circo muito famoso. Foi um às, equilibrista na corda bamba. O pai dele também, um famoso equilibrista. O pai do pai dele também. E foi justamente ele que veio da Hungria e iniciou a linhagem dos melhores equilibristas deste país. Eu seria hoje muito famoso se não tivesse caído do arame, quando tinha a sua idade. Essa moça que você encontrou, por quem você diz ter se apaixonado... pois saiba que ela anda torto, tem defeito no pé. Não serve para casar com você.

- Pai, eu também manco um pouco. Depois do acidente. Lembra-se? 
 
- Isso não importa, filho. Passado é passado. Mas não se esqueça de que a moça pisa torto.

Só por isso? Pensei. Só porque ela pisa torto? Isso eu sei. É porque ela usa sapatos de salto alto e eles deformam mesmo os pés. Mas isso não é motivo. Na verdade, eu sei por que papai não gosta dessa moça. É só porque ela não sabe cantar os salmos.

Toda noite a rotina era a mesma. Eu tomava a refeição e sentava-me no canto do sofá, entre as poltronas. Encolhido, refletindo, muito silencioso. Um bonequinho de pano, enfeitado de olhos, cabelos e nariz. Minha vida ficou muito monótona. As noites eram sempre iguais. De um lado, o meu pai na poltrona. Só era possível ver o jornal, que o cobria por inteiro. À sua esquerda estavam espalhadas dezenas de folhas amarrotadas, de outros jornais já lidos. Eu só sabia que papai estava ali porque, de vez em quando, ele espichava o longo pescoço para a esquerda, e o seu rosto aparecia com os enormes óculos embaçados. Depois, o seu rosto desaparecia por trás do jornal. Depois, aparecia de novo, mas do lado direito. O pescoço comprido, a língua de fora, e no outro canto dos lábios o charuto soltando bolinhas de fumaça. Logo depois, a sua cabeça sumia, novamente escondendo-se em seu mundo. Minha gorda mãe assentava-se ao piano azul. Inclinava o corpo para trás. Alongava a cabeça, até quase encostá-la nas costas, e ficava olhando para o teto, enquanto os seus dedos tocavam lentamente as teclas; e eu ouvia aquelas marchas fúnebres, as melodias tristes que ela tanto gostava, sempre as mesmas.

Um dia, levantei-me muito tarde. Lavei-me. Vesti-me sem a mínima disposição de ir administrar os plantios do sítio. Cheguei até meus pais e falei que a vida sem Marta não tinha muito sentido. Que viver não era nada interessante. Eles olharam para mim com indignação e desprezo, e logo continuaram com os seus afazeres; mergulharam de novo em seus falsos valores. Depois, ergueram a cabeça e falaram:

- Não se esqueça de Aleph, meu filho. Lembre-se de ALEPH, meu filho. O reinado de Davi voltará. Não se esqueça disso.

No outro dia, após o jantar, sentei-me no chão com a cabeça baixa. Eu estava pálido, com o olhar distante. Uma sensação de indiferença a tudo tomou conta de mim. Eu levantei-me e aproximei-me de meus pais. Quase colei os meus lábios nos ouvidos dos velhos e sussurrei:

- Deus dorme.

Imediatamente eles entreolharam-se em pânico, com o olhar perplexo. Então, eu gritei mais alto:

- É isso mesmo! Deus dorme! E tudo que surgiu de Aleph também dorme!

Meus pais fitaram-me com uma expressão de dor. Ergueram-se apressadamente das poltronas e abraçaram-se com energia. Saíram correndo pela sala, cambaleantes, tropeçando nos móveis. Entraram no quarto e trancaram a porta com enorme ruído. Eu permaneci em pé ali, no meu lugar. Dentro de pouco tempo, papai e mamãe saíram do quarto, cada um com uma mala, preparada às pressas. Tanto que de cada uma despencavam peças de roupas. Numa correria tresloucada, eles abriram a porta da frente, desceram a escada do pátio e caminharam para a rua. Vi, através da vidraça, que eles foram buscar refúgio na casa do vizinho.

Na outra noite, quando eu preparava o meu lanche, sozinho, sem a companhia dos pais, senti uma tristeza, um sentimento de perda irreparável. Sentei-me no sofá, deixei cair os braços ao longo das pernas e fiquei assim, nessa atitude de tolo, observando o relógio na parede. Sete horas. Oito horas. Nove horas. Nove horas e meia. Ergui-me, sobressaltado. Um ódio, uma raiva substituiu a minha palermice, e rasguei a camisa. Gritei o mais forte que pude:

- Deus dorme sim!

Gritei de novo, mais forte ainda:

- O Senhor dorme!

Ouvi um ruído de vidro quebrado, que veio da porta dos fundos. Depois ouvi passos. Fiquei olhando meio de lado para a direção dos cômodos da casa. Murmúrios na cozinha. Ouvi murmúrios vindos da cozinha. Muitas vozes, conversas proferidas em voz baixa. Entrelacei os meus braços em volta do pescoço e caí agachado. Foi aí que entraram os sete magos de trajes negros e chapéu pontudo. Não falaram nada. Arrastaram-me pela perna... 
 
*** 
 
Na bacia enferrujada que me jogaram, boiavam os fetos vivos. A água não era água. Era sangue coagulado. O mau cheiro que emanava dela era insuportável para qualquer ser humano. Mas eu não era mais humano. Por isso, suportei aquele cheiro de terra queimada misturada com carne podre.

A bacia era enorme e tinha formato oval. Como um ovo mesmo. Do tamanho de um lago. Os fetos que lá estavam eram esquisitos. Eu nunca havia visto fetos daquele jeito. Centenas deles. De todos os tamanhos possíveis. Mas o maior deles era menor do que minha coxa. Nenhum deles tinha os membros perfeitamente formados. As pernas eram curtas e a cabeça era grande. As mãos tinham só toquinhos de dedos. O curioso era que o rosto dos fetos era normal, como se já tivessem nascido adultos. Alguns usavam bigode, outros usavam barba amarela. Vi uns outros que eram calvos e outros tinham até cabelos brancos. Alguns eram mulheres, pois o formato do rosto era mais delicado e usavam cabeleiras de um marrom esverdeado. Outros confundiam, porque não tinham cabelos nem barba. Podiam ser tanto rapazinhos imberbes ou moças carecas. Aqueles fetos eram prematuros, bem prematuros. Não se assemelhavam em hipótese alguma a bebês. Observei e vi que tinham a arca dentária completa e bem formada. Eram dentinhos brancos. É uma sensação muito estranha ver um embrião mostrar os dentes. Esfria a espinha da gente.

Durante todo o tempo de minha permanência na bacia eu ficava flutuando, de costas, com os braços abertos, com as pernas um pouco dobradas para o interior do lago e a cabeça um pouco de lado, para não beber muita água. Eu não me mexia para não gastar energias, pois a comida era pouca. Eu alimentava-me dos restos que sobravam da comida dos fetos. Eles não eram condescendentes comigo. Esses restos de alimentos não tinham um sabor muito agradável. Os fetos mais jovens, que eram jogados de cima e vinham da cloaca do mundo, traziam consigo restos de suas bolsas amnióticas. Todos os outros fetos comiam essa secreção sebácea e depois lambiam os fetinhos, até eles despertarem para aquela vida nova. Então, os fetos faziam uma festa enorme e devoravam o cordão umbilical desses mais novos. Eu ficava aguardando para depois comer os restos dos umbigos que sobravam.

Eu deixava o meu corpo flutuar no sangue coagulado. Até dormia assim. Mas dizer que eu tinha sossego nas minhas horas de sono. Ah! isso eu não posso dizer. Os fetos não me davam sossego. Às vezes, vinham em silêncio, três deles, e mordiam minha carne. Faziam isso só para me verem acordar assustado. E riam.

Nas horas de sonolência, entre o abrir e fechar de olhos, eu ouvia os fetos se reunirem e sussurrarem entre si. Murmúrios distantes. De quando em quando, gargalhavam baixo. Risinhos abafados de quem conta segredos.

No entanto, o que mais me importunava não eram essas reuniões secretas nem as mordidas. Era a algazarra que faziam quando tentavam se relacionar sexualmente. Eles agarravam-se ruidosamente em grupos de quatro e gritavam em tom agudo, e esfregavam entre si os toquinhos de pernas. Mostravam os dentes para mim e faziam as mais grotescas caretas. Nessas horas, eu não suportava mesmo a tortura e, enchendo as mãos com aquela água asquerosa, atrapalhava as suas posições hediondas, borrifando-os. Nesse momento, os grupos se atrapalhavam todos e pulavam um do ombro do outro, mergulhando em alaridos. Por essa eu podia esperar – eles vinham por baixo e metiam os dentes nas minhas costas. Já não doíam tanto. Com o tempo, o corpo vai encharcando-se daquela água apodrecida, e os nervos anestesiam-se e perdem o reflexo da dor.

O meu desespero começou mesmo no dia em que apalpei as minhas costas e senti que um pedaço de carne estava desmanchando-se. Já fazia quase um ano que eu estava ali, flutuando nas águas da bacia. O meu desespero atingiu uma proporção tal que eu berrava dias e noites seguidas. Foi aí que me lembrei de Marta, e todas as noites eu a chamava em pensamentos. Pedia a sua ajuda. Eu precisava ser salvo de qualquer maneira. Eu estava morrendo aos poucos.

Numa noite de lua clara, senti a presença de Marta. Ela veio em forma de formigas. Centenas, milhares delas subiam as beiradas da bacia. O horizonte foi tapado por minúsculos pontos negros. De repente, pararam e permaneceram como se estivessem espreitando, aguardando alguma coisa. Eu acenei para elas, agitei os braços, mas as formigas não se moveram.

A água! Elas temem a água. Temem afogar-se! Naquele exato momento lembrei-me de que possuía comigo um canivete. O canivete! Apalpei o bolso de minha calça e tirei o meu canivete, que já estava muito corroído pela ferrugem, mas ainda em estado utilizável. Nadei com todas as minhas forças e fui mergulhando de um ponto a outro das águas, empurrando os fetos que dormiam. Eu atingia o fundo e ia furando os lados da bacia com muitos golpes de canivete. O sangue coagulado foi escoando pelos largos orifícios. O nível da superfície foi abaixando, mas eu continuava dando canivetadas como um doido.

Suportei todo o tipo de ataque dos dentes dos fetos que, já acordados, pressentiam o perigo e iniciavam um barulho infernal e confuso.

Durante todo o tempo de escoamento, as formigas continuaram inertes e imóveis, como uma faixa larga e escura no horizonte.

Era madrugada quando não restava mais líquido algum no interior da bacia. As formigas foram descendo pelas beiradas, outras passavam pelos buracos recém-abertos para a evasão das águas. Vendo que elas tinham dificuldades em atravessar os buracos, eu os abri ainda mais.

Os fetos foram sendo arrastados por milhares de formigas, que iam descendo pela bacia. Outras vinham de fora, rapidamente, atravessando gramados, pulando sobre troncos. Sentei-me na massa pastosa que restou no fundo da bacia e fiquei observando a multidão atravessar os buracos laterais, aumentados por mim. E as formigas foram arrastando os fetos vivos até desaparecerem nos formigueiros.

O sol ainda não tinha nascido quando me levantei e saí da bacia pestilenta. Caminhei durante uma hora. Encontrei um rio. Tirei minhas roupas e lavei-as nas suas margens. Torci peça por peça, até pingarem todas as gotas de água. Dependurei as partes de meu vestuário nos galhos de uma árvore e deitei-me na grama. Cansado como estava, não tive muita paciência de aguardar a chegada do sol para que secasse as minhas roupas. Foi assim que eu soltei umas tantas e boas gargalhadas e cobri o rosto para dormir.

(publicado em “Realismo: Quatro Histórias”, editora Scortecci, 1995)

(Imagem: Expressionismo - Francis Bacon, Nu Agachado, óleo e areia sobre tela)

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