Muitos escritores sofreram com a guerra. Hermann Hesse foi um deles. Em 1914 foi acusado de traidor da pátria porque escreveu um artigo pedindo aos concidadãos que abraçassem a paz. Foi um ato ingênuo, principalmente em um momento daqueles, quando todos os alemães estavam embuídos de glória nacional, orgulhosos pelo revide à ofensiva política que sofrera a nação. Por esse ato pacífico Hesse perdeu os amigos e o respeito da maioria dos leitores. Como se não bastasse, a esposa enlouqueceu e ele próprio enfrentou grave crise nervosa. Então, extremamente pobre e sem qualquer recurso para a sobrevivência em um país assolado pela depressão e inflação do pós-guerra, preferiu se exilar. Escolheu o sul da Suiça. Instalou-se na aldeia de Montagnola, próxima a Lugano. Naqueles anos teve momentos de fome, e na maioria das vezes alimentava-se apenas de macarrão branco. Depois, no período da segunda guerra, já cidadão suiço, acolheu judeus e vítimas da perseguição nazista. Por isso suas obras foram proibidas e queimadas em praça pública pelos adeptos de Hitler. De forma que, mesmo distante, continuou sofrendo agrúrias por problemas políticos.
Assim que passou toda a loucura bélica, e a sua antiga pátria havia perdido a guerra pela segunda vez, Hesse foi cumulado de condecorações, confessavam que ele estivera certo desde a primeira vez por defender a paz. Em 1946, a Alemanha ofereceu-lhe a premiação máxima a um literato: o Prêmio Goethe. No mesmo ano a Suécia concedeu-lhe o Prêmio Nobel. Mas Hermann Hesse já estava sábio o suficiente para não sentir grande entusiasmo diante de todas essas honrarias. Já havia aprendido muito sobre a insensatez humana, que hoje cospe e apedreja, amanhã abraça e estende louros. Aceitou os dois importantes prêmios somente pelo respeito que tinha pela literatura alemã, mas no fundo do íntimo compreendia que a única Pátria que havia conquistado era o Reino atemporal do Espírito, que existe na alma somente daqueles que se encontram consigo mesmo.
Em 1919, na viagem de despedida, deixando para trás as terras suiças de cultura alemã, rumo ao cantão do sul próximo à Itália, Hermann Hesse escreveu em seu caderno notas descritivas das paisagens e os pensamentos que lhe surgiam no percurso a pé pelos caminhos. Esse pequeno livro, publicado em 1920, com o título de Wanderung (Caminhada), é uma das obras de Hesse que mais amo. Dela retirei os três textos abaixo. São palavras sinceras e comoventes, ainda mais se lembrarmos que foram escritas por um homem que havia perdido de uma única vez a esposa, os amigos, o lar e a pátria. E nem por isso perdeu a fé.
O Desfiladeiro
O vento sopra nesse pequeno e corajoso caminho. Já não existem árvores ou arbustos, só o musgo e a rocha crescem aqui. Por aqui ninguém tem nada para procurar, ninguém tem propriedade. Aqui no alto, o camponês não tem nem feno, nem madeira. É o longínquo que atrai, a saudade que queima, foi ela que entre as rochas formou esse pequeno caminho, entre pântano e neve, levando para outros vales, outras casas, outras línguas e outra gente.
Bem no alto do desfiladeiro, eu paro. O caminho aqui desce para os dois lados, a água corre para ambos os lados e o que aqui em cima se une, palmo a palmo, leva seu rumo para dois mundos. Essa pequena poça, aqui junto do meu pé, corre para o norte. Sua água desce a longínquos, frios oceanos, mas logo ali, esse pequeno resto de neve vai pingando para o sul. Sua água, descendo pelas costas da Ligúria ou do Adriático, chega até o mar que se delimita com a África. Mas, na verdade todas as águas do mundo se encontram e é no úmido vôo de uma nuvem que o Ártico e o Nilo se fundem. A bela e antiga parábola santifica meu instante. Também a nós, viajantes, qualquer caminho conduz para casa.
Meu olhar ainda tem opção: tanto o norte, como o sul, lhe pertencem, a cinquenta passos, porém, só me restará aberto o sul. Como respira cheio de segredos, com seus vales azulados! Como é forte o bater do meu coração a ele me entregando! É o prenúncio de lagos e de jardins, e o olor de vinho e amêndoa sobe até aqui em cima. Antigo e santo mito de saudade e peregrinação a Roma!
Recordações da juventude ressoam em mim como o repicar de sinos em vales distantes: o extâse da primeira viagem ao sul, o inspirar inebriante do generoso ar dos jardins às margens dos lagos azulados, ao entardecer espreitar até a longínqua pátria através dos picos nevados das montanhas que empalideciam! A primeira prece defronte às santas colunas da antiguidade! A primeira e fabulosa visão do mar espumante batendo-se contra as rochas escuras!
O êxtase já não sinto, nem mais o desejo de mostrar a todos os meus entes queridos esse maravilhoso desconhecido e toda minha felicidade. Em meu coração não habita mais a primavera, já é verão. É diferente o tom da saudação do estranho que chega até a mim, em meu peito o seu eco ressoa bem mais baixinho. Já não jogo o meu chapéu para o alto, nem canto nenhuma canção, mas sorrio, não só com a boca, mas com a alma, com os olhos, com todo o meu ser e ofereço para essa terra, cujo perfume sobe até mim, sentimentos bem diversos dos de outrora, mais sensíveis, mais perspicazes e experientes, porém mais calmos e mais agradecidos. Hoje, tudo isso me pertence muito mais do que antes, chega a mim com muito maior riqueza e colorido. A minha saudade já não falsifica as cores do desconhecido, meus olhos se satisfazem com aquilo que ali está, pois já aprenderam a ver e o mundo ficou mais belo do que outrora.
Sim, o mundo está mais belo e eu estou só, mas não sofro em ser só. Não desejo nada diferente. Estou disposto a deixar-me assar pelo sol, estou ansioso em amadurecer. Estou pronto para a morte, pronto para renascer, pois o mundo ficou mais belo.
O Lago, a Árvore e a Montanha
Era uma vez um lago azul sobre o qual, céu azul adentro, erguia-se verde e amarela uma árvore na primavera e além das ondulantes montanhas o céu descansava quieto.
Um viajante estava sentado ao pé da árvore e pétalas amarelas caíam-lhe sobre os ombros. Ele estava cansado e fechara seus olhos, a árvore amarela cobria-o de sonhos.
O viajante retornara à infância, era de novo um menino que ouvia, atrás de sua casa, a mãe a cantar e fitava uma borboleta amarela esvoaçar docemente, era de um amarelo alegre contra aquele céu azul. Então, começou a correr atrás dela pelos prados, pelo riacho até o lago onde em seu vôo alto passou por sobre a límpida água. Aí o menino voou atrás dela com um flutuar leve, fácil, novo e feliz dentro daquele espaço azul. O sol brilhava em suas asas e ele sobre o lago, acima das montanhas continuava a voar atrás do amarelo. Lá no alto, pousado numa nuvem, estava Deus rodeado pelos anjos cantando. Um dos anjos lembrava muito sua mãe. Ele segurava um regador, inclinando-o sobre um canteiro de tulipas, para que todos pudessem beber. Foi para junto dele que o menino-anjo voou, abraçando-o.
O viajante esfregara os olhos fechando-os novamente. O menino-anjo trazia uma tulipa vermelha e prendeu-a sobre o busto da mãe, uma outra colocou em seus cabelos, então voaram todos, anjos, borboletas, animais, pássaros e peixes que lá estavam. Quem o menino chamasse para junto de si vinha voando até suas mãos e ficava pertencendo-lhe, deixando acarinhar-se, interrogar e ser mandado embora.
O viajante despertara e pensava nos anjos. Ouvia o leve murmúrio das folhas da árvore e a calma e quieta vida subir e descer em douradas correntes pelo seu caule. A montanha o fitava e lá coberto num manto marrom, debruçara-se Deus e cantava. Suas canções era possível ouvir por todo lado cristalino do algo, eram singelas, e em surdina misturavam-se ao leve som do correr da seiva da árvore, ao sangue que corria em seu coração, às correntes douradas que o sonho fazia correr pelo seu ser.
Então ele mesmo principiara a cantar, devagar, longamente. Sua canção não tinha arte, era como o próprio ar, como o bater de ondas, soava como o zumbido de uma abelha, mas era a resposta para o Deus distante que cantava, para a seiva que corria pela árvore e para a canção que corria em suas veias.
Longamente, o viajante ficou assim a cantarolar, como o som da campânula ao vento da primavera e do gafanhoto entoando sua música na grama. Talvez tenha cantado toda uma hora ou todo um ano. Cantava divinamente, com singeleza. Cantava a borboleta, a mãe, a tulipa, o lago, seu sangue e a seiva da árvore.
Quando, distraído, seguiu seu caminho pela quente terra adentro, aos poucos foi se lembrando de sua meta, de seu nome, que era uma terça-feira e que lá, do outro lado, o trem corria para Milão. Agora ele só ouvia ainda um cantar que chegava de longe, do outro lado do lago, era Deus que em seu manto marrom continuava a cantar, mas pouco a pouco o som foi-se perdendo do seu alcance.
Casa Vermelha
Casa vermelha! De seu pequeno jardim e vinhedo exala todo o sul dos Alpes. Muitas vezes já passei por ti e fizeste tremer essa ânsia de andarilho em meu ser fazendo que se lembrasse do seu oposto. Uma vez mais brinco com as velhas melodias: ter uma pátria, uma pequena casa num verde jardim, silêncio ao redor e mais além a pequena aldeia. No quartinho a minha cama olharia para o amanhecer, a minha própria cama, para o sul olharia a minha mesa e lá eu penduraria a pequena e antiga Virgem Santa que comprara em Brescia em outra viagem.
Como o dia que fica entre a noite e o amanhecer, assim entre o sonho por uma pátria e essa ânsia de viajante, transcorre a minha vida. Talvez um dia eu chegue até o ponto quando a viagem e a distância se encontrarão em minha alma e então levarei em mim as suas imagens sem ter que realizá-las. Também talvez chegue o dia em que possuirei pátria em mim, então não mais terei que namorar casinhas vermelhas e jardins. Ter uma pátria dentro de si mesmo!
Como seria então outra a vida! Ela teria um epicentro da qual emanariam todas as forças.
Dessa forma, porém, a minha vida não possui epicentro algum, esvoaça trêmula entre diversos pólos e contrapolos. Saudade de um lar aqui, saudade de estar a caminho lá, uma ânsia por solidão e retiro aqui, ânsia por amor e comunidade lá! Já fui colecionador de livros e quadros e já me desfiz de tudo. Já cultivei o vício e a volúpia que me levou à castidade e ao ascetismo, cônscio venerei a vida como matéria o que me fez descobri-la só como uma função e poder amá-la.
Bem, mas minha função não é transformar-me, isso é a função do milagre, quem porém o procurar, tentar atrai-lo para junto de si, tentar forçá-lo, desse ele só fugirá. O meu propósito é ficar flutuando entre muitas tensões contraditórias, mas estar pronto para quando o milagre chegar a mim. Meu propósito é estar sempre insatisfeito e sofrer inquietação.
Casa vermelha dentro desse jardim verdejante! Eu já te vivi, não devo desejar viver-te de novo. Já tive pátria uma vez, já construí uma casa, medi tetos e paredes e fiz os caminhos pelo jardim. As paredes enfeitei com os meus próprios quadros. Todo homem possui esse instinto, feliz sou eu de já ter podido viver isso! Muitos dos meus desejos já se realizaram em minha vida: queria ser poeta e consegui, quis possuir uma casa e construi uma, quis ter mulher e filhos e os tive, quis falar aos homens e impressioná-los e consegui, mas cada desejo, rapidamente, transformara-se em saturação e ficar enfastiado eu nunca suportei. Compor poemas ficou para mim suspeito, a minha casa me tolhia, nenhuma meta alcançada era uma meta, todo caminho era um desvio e todo descanso despertava uma nova nostalgia.
Ainda terei que trilhar muitos desvios e muitas satisfações me decepcionarão, mas algum dia tudo terá um sentido, pois é lá onde os contrastes se apagam que está o Nirvana, dentro de mim porém ainda brilham as amadas estrelas da saudade.
Hermann Hesse (1877-1962)
(Ilustração: aquarela de H. Hesse)
Para quem se interessar pelo livro completo
8 comentários:
Que maravilha...sutileza e arte à flor da pele...narra baixinho, quase sussurrando...maravilhoso que tenhas compartilhado.
Abraços
Lila
(lilarc88@hotmail.com)
Um dos livros mais lindos que li na vida. Pena que pouquíssima gente o conhece. Parabéns pelo post!
Que maravilha de blog. Este foi o primeiros de vários livros que li do Hesse, e é também o que mais amo. Foi importante na minha vida inteira, hoje, já velhinha, bem o sei. Muito agradecida por ter encontrado esses posts. Às vezes, o mundo vale a pena e a bênção
de vivê-lo.
One of my favorites books!! Love it!!
Não sei se você mantém esse blog ainda. Mas obrigada, muito obrigada! Amo esse livro.
Tantos anos se passaram e hoje você me presenteou com a indicação destes textos. O Desfiladeiro não me chega agora sem razão. Ficou muito fácil compreendê-lo pois a identificação com o meu momento é quase completa. Agradecido!
Li várias obras de Herman Hesse! A primeira foi Knulp. Debaixo das Rodas, Sidarta e Caminhada! Cada uma a um tempo!! . Knulp e Caminhada são as mais queridas!!
Gratidão pelo comentário. Aguçou-me ainda mais o desejo de ler.
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